Ollie Watkins, o “fora do comum” que salvou a Inglaterra com um momento muito comum
BSR Agency
Nem há 10 anos andava a fazer pela vida nas catacumbas do futebol inglês, a sonhar um dia ser profissional. Ollie Watkins estava paciente no banco, à espera desde o início do Europeu. Entrou a 10 minutos do desfecho da meia-final contra os Países Baixos e, numa clássica desmarcação de avançado, vinda dos manuais, deu à Inglaterra ida repetição à decisão do Europeu. Harry Kane gabou que fez algo incomum, mas fê-lo da maneira mais comum possível
O faro apurado de Ollie Watkins estava desgostado, ele não o escondeu. Vindo da melhor época da carreira na second city de Inglaterra com 27 golos para atestar a evidência que diria, com um microfone à frente, já extasiado e com a adrenalina a pulsar-lhe nas veias, ao avançado tem-lhe frustrado o papel secundário de ser um dos corpos sentados no banco, a cabeça erguida que nem suricata, empoleirada ao mínimo sinal do treinador para ir aquecer os músculos e depois entrar em campo uma vez que as suas qualidades que jamais demonstrara tanto como este ano não são merecedoras de titularidades no Europeu.
Com o cabelo rapado nas têmporas, tímido no topo da cabeça e o seu olhar concentrado, demorou 80 minutos a ser um dos que marravam em campo contra o bloco baixo de corpos laranjas, os ingleses tentavam q.b. sem demasiadas delongas porque quem os comanda é Gareth Southgate, o selecionador que avista uma sala cheia de caras talentosas e a gritar por se verem livres de amarras cada vez que dá uma palestra para explicar o que pretende do jogo seguinte, mas que parece apenas autorizar os jogadores a arriscarem o quanto baste, a serem um quê ousados, a levarem o arrojo até à segunda ou terceira casa e não até ao fim da rua.
Quando supostamente restavam 10 minutos na partida que já libertava no ar fragrância de mais um prolongamento, Ollie Watkins, o avançado com vida em Birmingham, a segunda maior cidade de Inglaterra onde floresce no Aston Villa, clube pelo qual há quatro temporadas é uma máquina de processos simples, quase de manual, de como atacar uma baliza, foi retirado do banco de suplentes pelo treinador cheio de etiquetas de conservadorismo que no ocaso da meia-final do Europeu é que decidiu experimentar um pouco de ousadia e ver o que estava do outro lado dessa porta: tirou Harry Kane, o incontestável melhor acumulador de golos na história da seleção inglesa, para colocar o rapaz de Torquay que não poderia ser um maior contraste de avançado.
Watkins é intensidade a pressionar sem bola para atazanar a vida aos defesas e tem um manancial de desmarcações, movimentos de rutura e diagonais de ataque ao espaço livre, de todo se assemelha à estirpe de avançado que Kane é a recuar a sua posição para longe dos centrais de modo a oferecer-se como pivô, receber a bola e lançar companheiros para ser um distribuidor de passes a mais no meio-campo. Tem sido o segundo a ser o primeiro, a ter todas as titularidades, mas foi o capitão, pouco depois, a gabar o substituto: “O Ollie tem estado à espera, tem sido paciente. O que ele fez foi outstanding. Que finalização.”
A primeira tradução que o tradutor do Google sugeriu para essa palavra que poderia ter diversos equivalentes em português foi “fora do comum”. Curioso como, sem lhe ser fornecido o contexto, a internet das coisas tropeça nas suas próprias pernas do desconhecimento e não poderia estar mais enganada.
O que Ollie Watkins executou, na sua ratice acionada por certo automaticamente ao fim de anos e mais anos de repetição, foi um clássico movimento de avançado, um que ensinam a petizes quando ainda só querem uma bola para se divertirem, caso se vejam perto do defesa central que está mais longe da bola e virem o outro a abandonar ligeiramente a linha defensiva para irem atrás da marcação ou saírem ao caminho de quem tem a bola. Aos 80’, quando Virgil van Dijk cedeu à atração da bola que estava nos pés de Cole Palmer e deu uns passos em frente, prontamente o inglês teve a reminiscência dos livres a ditar-lhe as ações.
Mal o central neerlandês avançou, Watkins partiu a correr numa curta diagonal do centro esquerda para o espaço vagado por Van Dijk. A típica desmarcação de avançado deu o sinal para Palmer colocar um passe rasteiro na sua direção e o resto, a partir daí, se encadear com simplicidade: sabendo e sentindo que o outro defesa central, Stefan de Vrij, o acompanhou para lhe fazer sombra, Ollie limitou-se a receber a bola já na área e para a frente, de forma orientada, para precisar do segundo toque só para a rematar à baliza, mais comum não poderia ser e a bola esgueirou-se por entre as pernas de um adversário que comummente terá julgado ter o lance sob controlo por tão usual ser e assim não acautelou para manter o corpo em pose fechada, sem grandes ângulos abertos, para estimar que aquilo não acontecesse.
“Podes ter cinco minutos, um minuto, mas podes fazer a diferença, podes ganhar-nos o torneio, somos uma grande equipa a estarmos sempre prontos”, elogiou também Harry Kane não especificamente sobre Ollie Watkins, mas aproveitando a deixa de ter sido ele, um habitual suplente, a empurrar esta ainda sensaborona Inglaterra, apesar das melhorias frente aos Países Baixos, até à final de um torneio, para arregimentar as tropas que no domingo deverão ter exatamente as mesmas caras a permanecer nas casernas, a aguardarem pacientemente por uma oportunidade.
E paciente tem sido Watkins desde há muito, não só nos antecedentes do golo com que resgatou a Inglaterra aos 90’. Quando se despediu da adolescência, o Exeter, clube então na quarta divisão inglesa (League Two) emprestou-o ao Weston Super Mare, equipa que estava dois degraus abaixo, para o na altura rápido extremo ganhar calo a jogar com homens adultos. Regressaria com golos marcados embora ainda com dúvidas sobre se o futebol era, de facto, o caminho a seguir. “Ele fazia o check em todas as caixas: tinha a atitude perfeita, a personalidade perfeita, a capacidade física, mas, com 17, 18 ou 19 anos, nunca tinha jogado tão bem quanto deveria”, recordou, à BBC, o seu primeiro treinador no futebol sénior, Paul Tisdale.
Esse empréstimo às caves da pirâmide do futebol do país propulsionou Watkins a um tipo de ascensão para a qual Inglaterra ainda mantém caminhos abertos: algum clique se deu no extremo que aprofundou a relação com a baliza no retorno ao Exeter, desatou a marcar golos e o Brendtford, do Championship, investiu dinheiro nele para mais tarde, em 2021, o Aston Villa gastar ainda mais para o ter na Premier League e transformá-lo, em definitivo, num avançado. Mas algo dicotómico existe em Ollie Watkins, não tanto hoje em dia, apesar de réstias ainda aparecerem aqui e ali. “Até quando cheguei ao Aston Villa, onde fui comprado por 30 milhões de libras, ainda estava incerto se merecia estar ali”, disse o jogador, há cerca de um mês.
Não parece haver pessoa que se cruze com o inglês que hoje não lhe gabe a mentalidade. Harry Kane e Gareth Southgate foram os mais recentes, embora tipos como Dean Smith, seu antigo treinador no Villa - “a sua maior força pode ser a sua maior fraqueza, vergasta-se por pequenas coisas, mas isso também lhe dá força” -, ou Unai Emery, o espanhol que atualmente o orienta no mesmo clube - “ele é incrível, está sempre a fazer o seu trabalhar, a adaptar-se, a sua mentalidade é a melhor qualidade que tem” - já enaltecessem que é a alma de Watkins que não tem parado de o mover na direção dos níveis de rendimento que hoje oferece.
A vida, pelos vistos, retribui-lhe agora com a pitada de sorte necessária a qualquer história de sucesso, Ollie jurou “pela vida dos filhos” que antes de entrar no Inglaterra-Países Baixos disse a Cole Palmer que ambos iriam a jogo e que o canhoto iria dar a assistência para o avançado marcar. A profecia nada prova, mesmo que se tenha concretizado, mas pode falar toneladas acerca da mentalidade que rege o dia-a-dia de Ollie Watkins, de quem dizem ser um viciado em analisar vídeos dos seus jogos e até de outros avançados que foram treinados por Unai Emery em clubes anteriores, para assimilar o que o metódico treinador espanhol pede a quem ocupe a posição.
Ele não é o avançado que permanece no treino, em campo, a fazer remates ou exercícios específicos de finalização quando toda a gente já foi para o banho, é sim o estudioso que pede a companhia de alguém da equipa técnica para com ele olhar para vídeos, analisar os seus movimentos, estudar desmarcações e radiografar o que pode fazer quando os defesas centrais ou os médios adversários se mexem desta ou daquela maneira, além de como reagir quando os defesas e centrocampistas da própria equipa têm a bola nos pés. Este é o nível da mentalidade de Ollie Watkins, essa, sim, invulgar.
A forma como o inglês, aos 28 anos, a transplanta para o rendimento que dá em campo é uma aula de como ser prático a concentrar-se em fazer bem as coisas simples: a desmarcação curta para ferir os engodos nos quais os centrais caem; a diagonal longa para esticar o jogo, receber a bola no espaço e esperar pela equipa; o ataque à profundidade quando um companheiro seu está de frente para o jogo, sem pressão e há espaço nas costas da linha defensiva para ser explorado.
Ollie Watkins não é, de todo, comum a preparar-se para o que faz em campo. Quando está lá dentro, porém, vira um compêndio de eficácia a tirar frutos de movimentos vulgares que viram letais se executados com a minúcia que o parece acompanhar.