Euro 2016

Do chapéu de Poborski à wonderland de Cadete

Euro-96: a segunda paragem portuguesa nesta competição traz-nos à memória aquele checo dos cabelos encaracolados e aquele português dos cabelos não menos encaracolados

Arrumar a vida em títulos, eis uma das maiores habilidades do jornalismo desportivo. Do “cantinho do Morais”, ao “calcanhar de Madjer”, do “penalty à Panenka” ao “tiki taka espanhol”, toda uma jornada, toda uma competição, sintetizada num gesto magistral, numa ação gloriosa, numa molécula de vida. Pois bem, no Euro 96, para nós portugueses, esse ponto de Arquimedes, terá sido o “chapéu de Poborski”. Um ponto final, mais glosado do que todo o texto, mais recordado do que a obra completa.

Ainda hoje, incrédulos, nos perguntamos como foi possível, aquele jogador atarracado, com ar de guitarrista de banda de heavy metal de quarta categoria, romper, bola controlada, como uma flecha, numa floresta de pernas portuguesas. Um, dois, três, quatro, cinco… Rewind: Paulo Sousa, Oceano, Secretário, Fernando Couto, Hélder, por fim Baía pela frente, olhos nos olhos, quase um metro e noventa de guarda-redes e… chapéu. Nem um desarme, nem um carrinho, uma falta cirúrgica, ou qualquer outra recomendação do catálogo “futebolês”, para mudar o curso da história. Nada, o primeiro teste da geração de ouro, entre gente crescida, terminava assim, em chapelada, no Villa Park de Birmingham. No exacto local onde a República Checa arrancava para a melhor participação de sempre, na sua ainda curta vida de nação soberana, com epílogo na final de Wembley. E no exacto momento em que Karel Poborski disparou para uma carreira fulgurante que o levou a jogar em clubes como o Manchester United, o Benfica ou a Lazio de Roma.

No desporto é assim, perder e ganhar, glória e desilusão, memória e esquecimento, duas faces da mesma moeda. Ora, mutatis mutandis, a outra face de Poborski bem podia chamar-se Cadete, e o Euro 96 esse ponto de intersecção de duas trajectórias proporcionalmente divergentes. Aos olhos contemporâneos a comparação é estranha, afinal o pequeno ogre do sul da Boémia tornou-se no mais internacional dos jogadores checos e Cadete acabou como estrela decadente de reality shows. Mas, nesse tempo, ambos faziam da velocidade uma arma letal, ambos jogavam preferencialmente pelo lado direito, ambos tinham pinta de ator de filmes de ação. Em Junho de 1996, Jorge Cadete era um cavalo em quem se podia apostar. Vinha de um final de época alucinante, na Escócia – cinco jogos, cinco golos. Cinco jogos apenas, e já tinha conquistado os corações e as gargantas dos adeptos do Celtic, com direito a música personalizada e tudo. Ora, foi isso mesmo que a SIC testemunhou, na primeira reportagem enviada da Irlanda, antes mesmo da Seleção Nacional chegar para estágio, quando se cruzou nas ruas de Dublin, com adeptos de camisola verde e branca, cores celtas da Irlanda e dos católicos de Glasgow. Dir-se-ia, dois países, uma religião, o mesmo clube: o Celtic de Cadete. E é assim que a cobertura Euro 96 arranca na SIC, jovem canal que ainda não tinha completado 4 anos, com uma interpretação etílica de in Cadete Wonderland por solistas de aquecimento recente, nos Pubs de Dublin: “There’s only one Jorge Cadete, he puts the ball in the net, he’s Portuguese and he scores with ease, walking in Cadete wonderland”. Bom prenúncio: Cadete jogava em casa, e o repórter tinha material surpreendente para a peça do dia. A primeira de dezenas, numa longa e histórica jornada, que mudou a forma como as televisões portuguesas passaram cobrir os grandes eventos desportivos. Já não correria o risco, como Leopold Bloom de Joyce, de se perder pelas ruas Dublin, sem atinar com o regresso a Ítaca.

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Foi este o ponto alto de Cadete no Europeu. “Football is coming home”, era o slogan do campeonato, mas a estrela de Cadete não brilhou no regresso à Grã-Bretanha. Não saiu do banco, no primeiro jogo, em Sheffield, contra a Dinamarca de Schmeichel e dos irmãos Laudrup. Empate a um golo. Figo, Rui Costa, João Pinto, Paulo Sousa, Sá Pinto, Fernando Couto pontificavam numa equipa em que a bola não chegava, para tanto talento, em busca de afirmação. Cadete ficou para trás. No City Ground de Nottingham, jogou vinte discretos minutos na vitória contra a Turquia, e voltou a ficar no banco, no terceiro jogo, frente à Croácia de Davor Suker e Robert Prosinecki. Só voltaria a entrar em campo no jogo com a República Checa, 8 escassos minutos que não deixaram marca. Poborski enviou-nos para casa e Eusébio foi, como sempre acontecia, o mais aplaudido dos portugueses.

Cadete saiu do Europeu sem honra nem glória, mas obteve a redenção na época seguinte, ainda ao serviço do Celtic. Foi o melhor marcador do campeonato e foi tema de mais um cântico. Desta vez, entoado pelos rivais protestantes do Glasgow Rangers: “There's only one Jorge Cadete, he’s got hair like spaghetti, he’s Portuguese, and he's one of these, walking in a Laudrup wonderland”. O resto da história é conhecida. Cadete não se adaptou ao clima e à gastronomia escocesa, voltou para Portugal, depois de uma passagem breve pela Galiza, e entrou num ciclo descendente sem fim à vista.

Na história do Europeu ficam os penalties, que atiraram para fora da competição as seleções que melhor futebol praticavam. A Espanha que, apesar de ter um jogador chamado Amor tinha fama de ser furiosa; a Holanda que se confundia com a equipa do Ajax, campeã da Europa um ano antes; A França, já com Zidane aos comandos de uma equipa que mais tarde ganharia tudo; e, enfim, a Inglaterra, a jogar em casa, com o melhor marcador Alan Shearer e o recuperado Paul Gascoigne. Contas feitas, entre quartos e meias-finais, só dois jogos não foram decididos no desempate por grandes penalidades. Até a final foi resolvida pela regra do “golo de ouro”. E aí já se sabe quem levou a taça, porque no futebol são onze contra onze e no fim ganha a Alemanha.

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