A hora do cigano

Martim Silva, Diretor Executivo do Expresso, escreve sobre Quaresma, Ronaldo, Boloni - e sobre os negócios que se fazem à margem do Europeu
Martim Silva, Diretor Executivo do Expresso, escreve sobre Quaresma, Ronaldo, Boloni - e sobre os negócios que se fazem à margem do Europeu
Diretor-Executivo
Há 15 anos chegava ao Sporting, vindo de França, para onde partiu ontem a seleção nacional, um senhor de nome Boloni, antiga glória do Steaua de Bucareste. Afável e muito educado, Boloni esteve pouco mais de um ano em Alvalade. O suficiente para conquistar um título nacional para o clube (por sinal, o último que os leões conseguiram).
Mas, verdadeiramente, o grande legado de Boloni tem um nome. Ou melhor, tem dois nomes.
Cristiano Ronaldo e Ricardo Quaresma. Dois portentos únicos da formação leonina e que foram, é incrível mas é verdade, lançados… na mesma época. Podemos ficar uma vida sem ter outro jogador assim, mas naquele ano surgiram logo dois!
Ronaldo era naquela altura um portento de finta e velocidade. Um cavalo selvagem à solta pelo campo. Mas, pelo menos por uns tempos, quem era apontado como A grande estrela era Ricardo Quaresma. A sua técnica apurada, carregada de arrogância e quase desprezo pelos adversários, os pés tortos e as trivelas únicas, os centros, os remates encantavam os adeptos.
Estavamos, já o disse, na temporada 2001/2002.
Quinze anos depois é uma evidência que enquanto um dos miúdos se tornou o melhor futebolista nacional de todos os tempos (ou, pelo menos, o mais titulado, famoso e mundialmente impactante jogador que já tivémos) o outro passou ao lado. Não se sabe bem do quê, mas quem como Quaresma faz o golo que faz contra a Estónia na quarta-feira, com um extraordinário chapéu cheio de efeito sobre o guarda-redes, só pode ter passado ao lado de algo na sua carreira.
Repare-se, Quaresma fez uma carreira incrível. Começou no Sporting, passou pelo Barcelona, Chelsea e Inter de Milão, brilhou (duas vezes) no Porto, esteve no Dubai e é estrela do Besiktas da Turquia.
Quaresma pertence ao núcleo restrito de eleitos de entre os eleitos. Mas só tem metade das internacionalizações de Ronaldo. Fez meia dúzia de golos na seleção. Não foi ao Euro 2004, no de 2008 só fez dois jogos e há quatro anos nem sequer foi utilizado. E quanto a Mundiais, enquanto Ronaldo foi figura de proa em 2006, 2010 e 2014, Quaresma… nunca foi a nenhum.
Mas o que Quaresma tem, como mostrou quarta-feira, é que provavelmente é o único jogador nacional que em forma (e ele está em forma) pode conseguir ser a figura do jogo num jogo em que também esteja Ronaldo.
Para o Euro que hoje começa, as nossas esperanças estão todas em Ronaldo. Mas, para a seleção, as esperanças de Ronaldo estão todas em Quaresma.
Que esta seja, finalmente, a hora do cigano.
Como futebol é futebol e nestas alturas somos todos os maiores e ninguém se queixa (desde que vamos ganhando os jogos), a notícia, destes dias, de que um jogador da seleção nacional assinou um acordo com a Federação para que seja uma marca de sapatos com o seu nome a calçar os jogadores da seleção passou totalmente despercebida. Ou então foi recebida com um sorriso condescendente. Pois, só para estragar o clima, devo dizer que não só não percebo, como me faz imensa confusão que a nenhum dos responsáveis pelo futebol em Portugal passe pela cabeça que isto talvez não seja boa ideia.
Os jogadores vão para a seleção para jogar. Pelo seu país. Não para fazerem negócios com a entidade que os seleciona. Agora é Ronaldo a calçar a seleção, amanhã é o Nani a fornecer os chapéus e no dia seguinte o Moutinho a vender as refeições que os jogadores vão comer, ou o Pepe a patrocinar as camisolas da equipa das quinas. Haja tino.
Os jogadores estão lá para jogar. Chamem-se Ronaldo ou Zé dos Anzóis. Ponto final.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: mgsilva@expresso.impresa.pt