Fernando Santos só regressa a Portugal no dia 11. Após esta saga algo improvável de conferências de imprensa aparentemente mal medidas e empates moderadamente enjoativos, arrisca-se a ser homenageado com uma estátua, um cortejo pelo país inteiro, uma nova feijoada na Ponte Vasco da Gama, um logotipo humano feito com jogadores formados no Sporting, uma condecoração do Presidente da República e, em nome do encadeamento lógico, uma pena de prisão.
Esta anticrónica é muito difícil de escrever: não só porque vencemos em 90 minutos, mas fundamentalmente porque estamos com uma mão no teclado e outra na sexta imperial. É apenas a segunda final na nossa história. Decerto compreenderão. À nossa!
A primeira parte foi morninha e apenas ligeiramente mais propícia a comentários depreciativos. Contámos meio remate nosso à baliza de Gales, vimos Ronaldo falhar uma tentativa de pontapé de bicicleta e queixar-se seis vezes da arbitragem, vimos Danilo a tropeçar metaforicamente nos nervos 2 ou 3 vezes, e vimos Nani tropeçar literalmente em si próprio. Nada de novo. Mas também vimos alguns sinais de que hoje a noite nos sorriria. Bruno Alves chegou ao fim da primeira parte sem sequer um amarelo. João Mário passou mais tempo na sua posição hoje do que nas 4 semanas anteriores. Renato Sanches continuou a desafiar os limites do corpo humano e chegou ao fim dos primeiros 45 minutos com a mesma idade com que iniciara a partida. Enfim, meio remate nosso à baliza e zero de Gales, que ainda assim conseguiu assustar a defesa portuguesa num canto rasteiro atrasado, vulgo “à Camacho”, que culminou num remate desastrado de Bale, vulgo à Éder.
Nota positiva para Cédric, responsável por dois lances essenciais na primeira parte: um nó cego a um galês por volta dos 26 minutos, o tipo de lance que, quando bem executado, vale 3 pontos na psique de um português; 3 minutos depois, pleno de entusiasmo, o mesmo Cédric permite a milhões de pessoas espirituosas utilizarem a expressão “3 pontos para o País de Gales”, num remate de fora da área que demonstra que às vezes a confiança em nós mesmos pode ser perigosa. A primeira parte terminou como todos os jogos de Portugal neste europeu - empatada - com uma seleção portuguesa a tentar ter melhor posse de bola, com mais espaço para explanar o seu jogo algo soporífero (explanar e soporífero numa só frase, inchem). Uma equipa, no fundo, à procura de si mesma. A ocupação dos espaços, assim como as basculações e outros termos que poderiam insinuar que percebemos alguma coisa disto, mostravam uma equipa muito mais não-f***m-isto-que-ao-menos-não-estamos-a-perder do que se-perdermos-que-se-f**a.
E depois aconteceu tudo
A segunda parte começa proverbialmente com duas perdas de bola escusadas de Renato Sanches, quando de repente se começa a fazer história: um canto curto logo seguido de um cruzamento de Raphael Guerreiro encontra Cristiano Ronaldo numa breve pausa do choro que caracterizou a sua primeira parte. Cristiano Ronaldo aparece nas costas de um defesa com o tipo de elevação do Tsubasa (vai ser muita estranho se não souberem quem é o Tsubasa) e fuzila o guarda-redes galês. Acabou-se. Quantos minutos faltam? 5 minutos de descontos? ACABE COM ISTO, SENHOR ÁRBITRO. ESPERE LÁ. NÃO ACABE JÁ, QUE VEM ALI O NANI COM A BOLA A JEITO.
O Nani? O Nani! MALTA, o Nani está em campo! É GOLO!
O resto é história. A equipa galesa devia ter aprendido alguma coisa com aquele vendedor de kebab do Cais do Sodré. Acossados por um gangue de portugueses com fome de vitórias e níveis crescentes de desrespeito técnico-táctico, os galeses são incapazes de reagir. Tudo, mas mesmo tudo nos corre bem. Aos 61 minutos, Bruno Alves mostra alguma perdularidade, numa oportunidade primorosa de espetar os pitons no trombil de um galês que resulta em corte. O destino voltava a fintar os adeptos nacionais. A bola sai pela linha de cabeceira. Ou seria lateral? Certo certo é que vamos na nona imperial. Rimou.
Aos 62’ Cristiano, ainda a explorar as possibilidades do seu futebol quando não passa metade do tempo a queixar-se, quase manda uma bofetada de luva branca aos críticos dos seus livres com um livre que teria levado milhões de portugueses a rever a sua opinião nesta altura já encharcada em álcool. Entretanto, ouvem-se buzinas em São Sebastião. Será chuva, será vento? Serão as obras do eixo Marquês-Entrecampos? Chuva não é certamente e toda a gente sabe que os impedimentos causados por estas obras acontecem quase sempre de dia. Não, eram mesmo festejos antecipados pela passagem à final.
Não foi caso para menos. A partir daqui foi um festival. Aos 65’’ Nani atira ao boneco, boneco esse que defende na direção do pé direito de João Mário, que revela níveis elevados de perplexidade perante a primeira oportunidade clamorosa que este Euro lhe providenciou. Era quase o terceiro. E assim foi até final, uma sucessão de quase, quase, quases, até ao já lá estamos c#$%&#$.
Toda a gente em campo aparece para a celebração. E esta anticrónica esfuma-se. Rui Patrício seguro entre os postes, ataques sucessivos em superioridade numérica, Danilo quase marca, Renato continua a falhar passes como se isso fosse uma excentricidade qualquer, um penteado que nele não fica assim tão bem. Portugal passa os últimos 30 minutos do jogo a descobrir, lance após lance, a complexa experiência sensorial que ocorre a uma equipa de futebol quando está em vantagem no resultado. É como se nos tivéssemos apaixonado pela primeira vez. Não há amanhã. Corremos. Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos (isto é uma coisa mais ou menos erudita). O amor tem destas coisas.
Rui Patrício defende com mestria o segundo remate a 634 metros da baliza saído de um jogo de consola. Os galeses ganham a segunda bola num ou noutro lance, mas até podiam ganhar a terceira ou a quarta que dali não vinha nada. Raphael Guerreiro faz um cabrito a um galês, uma expressão que deveríamos pensar em eternizar como provérbio. Fazer um cabrito a um galês. Olha-me este, pensa que está a fazer um cabrito a um galês. Pensem nisso. Cristiano falha mais um golo. André Gomes dança ao longo de todo o relvado, eufórico por finalmente ter tempo para pensar devidamente o seu jogo, compor as suas jogadas, mostrar o seu perfume ao mundo, garantir aquela transferência para um clube melhor. Quaresma substitui Nani, um jogador que é difícil amar ou odiar, dado o rácio entre golos/assistências neste Europeu e lances que nos dão vontade de lhe arrancar a cabeça. A câmara filma Fernando Santos. Vemo-lo pesquisar voos para Lisboa no telefone. Cédric leva um pontapé na cara, não de Bruno Alves mas de Gareth Bale. Pediram-nos uma anticrónica, mas não está a dar. Toda a gente acerta os passes, mesmo quando os falha estupidamente. 3 minutos de prolongamento. Quaresma faz a melhor cueca deste Euro e põe um galês a chorar. Livre. É perigoso. Só mais um. Já ganhámos, mas era fixe. Será que é desta? Não. Raphael Guerreiro assiste mais uma vez na tribuna VIP a um remate de Cristiano contra a barreira. O jogo termina. Estamos na final. ESTAMOS NA FINAL. Qual anticrónica, qual quê. As buzinas multiplicam-se como se alguém agora anunciasse mais obras no túnel do Marquês. Nossa Senhora de Caravaggio chega numa carrinha de caixa aberta, pouco depois aparece desdentada em direto na tv. VAMOS PORTUGAL! Na flash interview, Cristiano diz “é como eu digo sempre, mais vale começar mal e acabar bem”. Jamais o ouvimos proferir estas palavras, mas ninguém quer saber. Até porque, como Cristiano Ronaldo costuma dizer, "é inadequado procurar fazer esse tipo de análise assente no chamado fact-checking a propósito de uma declaração feita num estado invulgarmente eufórico". O único fact-checking que interessa é este: a jogar bem ou a jogar mal, estamos na final. O tal galês já se pode casar amanhã. E desta vez ganhámos. Quando assim é, que se... Vocês já sabem o resto.
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