"Puskás, Ferenc". Apelidos primeiro, dizem os húngaros

Diogo Pombo, enviado ao Euro 2020
Jornalista
Ferenc Puskás Biró chegou ao Real Madrid, nos anos 60, com o cabelo alisado pela brilhantina e uma barriga pronunciada, a saliência abdominal viria a encurtar-se, o estilo capilar não, a patente militar já vinha com ele do Honvéd, a equipa do exército húngaro. Ficaria alcunhado de major galopante, o seu pé esquerdo muito batalhou no futebol, mas, em Budapeste, ele está em nenhures. Quem é lido um pouco por todo o lado é “Puskás, Ferenc”.
O troleibus 75, de esqueleto vermelho e envelhecido, assim chamado por estar umbilicalmente preso ao fio elétrico que o conduz do hotel, no distrito XIII, ao estádio, plantado no XIV e que apresenta o destino, também, de lógica invertida para quem vem do pedaço de terra mais ocidental na Europa. Sejam bem-vindos ao “Puskás Ferenc Stadion”, o único dos 12 recintos do Europeu que poderá estar cheio de pessoas até às costuras.
Os cartazes de azul com personalidade celeste cobrem muitas grades que limitam os acessos ao estádio, ninguém se atreveria a julgar que o Euro 2020 se jogaria noutro sítio da cidade, é mesmo aqui, onde cabem 67.215 almas que Portugal jogará com a Hungria, a 15 de junho, e a França, a 23, no arranque e da conclusão da fase de grupos. Bem antes, a dia 7, um pavilhão colado à arena abriu para receber os primeiros corpos.
É lá que todo o jornalista deve ir para levantar a credencial do torneio. Entra-se num circuito de formulários carentes de preenchimento, desinfeção de mãos, respeito por placas que mostram onde o húngaro vai buscar as 44 letras do seu alfabeto e amostragem e devolução de identificação. E, às tantas, encrencas com apelidos. “Wow, tantos nomes, isto é normal?”, pergunta a primeira voluntária da UEFA, questão mais ou menos replicada pela segunda, depois pela terceira, o mesmo espanto por em Portugal ser comum pescar apelidos às duas margens da família.
Cada novo húngaro que pede a identificação e a lê começa por ditar o apelido. Fazem-no a boa-vindar os jornalistas, a nomear a estação de metro ou paragem de autocarro de “Puskás, Ferenc”, ou a assinar um e-mail sem necessidade de esferográfica (foram os húngaros a inventá-la). Até quem não nasceu com o magiar na língua se refere a um antigo guarda-redes da Hungria por essa ordem, enquanto o vocaliza em português. No momento, Eurico Caetano nem se parece aperceber da inocente baldroca.
Está a escassos meses de completar 10 anos em Budapeste. A vida tinha-o a trabalhar na aviação, era comissário de bordo quando se mudou para a Hungria e, muitas trocas volvidas, Eurico vai nos 38 anos e foi ficando, diz entender 70% do que ouve e lhe dizem os húngaros, mas ripostar no idioma é difícil, prefere expressar-se em inglês se bem que o maneirismo que hierarquiza o apelido antes do primeiro lhe invade até conversas que tem em português.
Eurico é casado, a mulher é húngara e nem ela é capaz de o explicar, ao certo. “Não garante que seja por isto, mas o que aprendeu sempre é que os nomes húngaros, quando surgiram, eram pouquíssimos”, começa por dizer, encaminhando mensagem recua rebobina o argumentário - “apenas davam às pessoas o nome dos reis e rainhas”. Era uma questão de natalidade até virar uma de repetição. “Então, o último nome surgiu no início para fazer essa distinção”.
Todos os nomes, prossegue, seriam baseados em “figuras da realeza ou do clero”, mas Eurico, prazeroso em toda a conversa que se espreguice sobre a cena musical húngara, a forma como os húngaros a encenam em Budapeste e a vida cultural que faz a cidade mexer, passa uma mensagem final da mulher acerca dos apelidos: “sempre aprendeu assim, mas não garante que seja mito urbano”.
Mauro Sousa, também casado com uma húngara, é outra caixa de ressonância de incertezas - “diz que o apelido é sempre o paterno, mas não sabe porque se identificam assim”. Desconhecem os porquês, porém conhecem o procedimento e assim se priva com quem seja em Budapeste.
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