Às vezes é no meio do silêncio que se descobre a ilusão
Bernadett Szabo - Pool
Até aos 84' não havia golos e estava-se numa segunda parte que já parecia ser muito da Hungria, mas, com dois ricochetes, Raphaël Guerreiro marcou. Depois, veio o penálti que tombou em definitivo os húngaros que Portugal nunca soube bem desmontar. E o recorde de Ronaldo: o capitão fez dois golos, é o melhor marcador da história dos Europeus e a seleção entrou neste a ganhar (0-3), o que não acontecia desde 2008
Não sei quando, onde e por que razão muitos seres humanos se começaram a encavalitar em construções com assentos encafuados para verem, de perto, muito poucos outros humanos a praticarem desporto, mas, por certo, a explicação está no emotivo, no que a ciência explica com dopaminas, endorfinas e serotoninas a darem uma festa no nosso cérebro, que na prática é o que sentimos na pele, tão inexplicável ainda é que ainda não arranjámos melhor do que dizer que estamos com pele de galinha e a Puskás Arena é só mais uma prova.
Bastou o disco-jockey do estádio, ainda a horas do arranque, carregar play na canção oficial do Europeu de há cinco anos para a pele aqui ficar galinácea, são memórias, elas mexem connosco, embora não tanto como ouvir um, e dois, e três e uns incontáveis milhares de húngaros a berrarem atrás de uma baliza. Estar ano e meio sem um estádio feito banheira atolada de gente e, de repente, ter um exército vocal de húngaros a estremecerem tudo é outro arrepio e depois, a parte de os jogadores se alhearem disto tudo, “esqueçam, é tanga”.
Disse-me, em Budapeste, quem treina na Hungria há três anos, que “um jogador só ignora o que está à sua volta no momento em que está em ação com bola”, João Janeiro esteve na inauguração desta arena e avisou da comoção barulhenta com que os húngaros jogam, nem um minuto havia quando Pepe parado em falta e o grave de um búúú monumental a doer nos ouvidos de toda a gente.
Meros minutos demoram até ao silêncio encher mais o estádio do que eles, calados ao verem Diogo Jota rematar de pé esquerdo, à entrada da área, meio desamparado pela má receção da bola passada por Bernardo Silva para o buraco entre os três centrais húngaros. Gulácsi desviou a bola (5’) que o português não passou a Ronaldo, sozinho e de frente para a baliza, esse retângulo que Portugal pouco vê, figurativamente, até Pepe arriscar alguma coisa diferente no jogo literal.
À segunda vez que Cristiano dá um passo longe de um central, cria o engodo e depois parte em sprint para as suas costas, o central corta a bola nessa profundidade e o capitão da seleção, sem olhar para o alvo, remata de primeira sem grande força. Agora são os pés de Gulácsi que surgem (19’) por entre o sepulcro do silêncio para despertarem os húngaros.
Portugal tem duas oportunidades em 20 minutos, mas nem por isso joga entre as linhas adversárias. Não faz mexer a última linha de cinco (à exceção da jogada de Ronaldo) com variações de ritmo de posse de bola, não se aventura muito para lá da segurança de ter Danilo e William, um à frente do outro, às vezes quase como um losango na saída de bola (um a recuar entre os centrais). A equipa ganha escoamento limpo de jogo e assim evade a pressão forte com que a Hungria incomoda, ao início, e se esvai, aos poucos, durante o quarto de hora inicial. Todos baixam para trás da linha da bola.
Com o tempo, os jogadores portugueses melhoram, não dão pulos gigantes mas melhoram, a seleção vai tendo mais de William na bola, em sítios onde os médios húngaros ficam na dúvida se hão-de acorrer a esse prejuízo, ou se haveria de ser um dos centrais a fazê-lo e Portugal arranja espaços por onde lançar gente. Passam os minutos e a presença de Danilo perante um bloco mais baixo roça o desnecessário.
Havendo protagonismo de William nas jogadas, Bruno Fernandes solta-se e vai associar-se aos laterais, é que arranja bola para colocar na área e Ronaldo (43’), nem a três metros da baliza, a desviar para lá da barra - um milésimo de segundo antes, Jota fez-se com um calcanhar esperançoso a essa bola, roçou-lhe e daí não veio ajuda. Pouco antes, um cruzamento rasteiro de Nélson Semedo também foi reclamado por um mal enquadrado Diogo, que teve de se virar e perder tempo com a bola que seria mais redonda para o Bruno que tinha atrás, virado para o alvo.
E o silêncio dos húngaros a virar reincidente, haveria a primeira parte de ter mais tempo e acumulariam mais rascunhos de gritos salvos para mostragem futura, quando chegou o intervalo já muito pouco se ouviam e, às vezes, é no meio do silêncio que se descobrem as palavras por dizer, Maria Guinot dizia-o faz anos - juntá-la a esta causa futebolística que nos junta aqui também arrepiou, à brava -, mas, ao intervalo, não saiu nada da boca de Fernando Santos para que houvesse substituições.
A seleção mantinha-se com o seu género de duplo pivot quando todos os desmascarados húngaros regressaram aos seus lugares, mais fácil seria descortinar Wally na arena do que avistar um magiar a proteger a boca e o nariz. A parte vocal cedo voltou a não se notar, quando, logo num canto, a cabeça de Pepe sacou de Gulácsi a melhor parada (47’) do jogo. Foi antes de a equipa de Portugal diminuir a sua posse de bola a algo estéril, quase passivo, circulando-a em ‘u’ e ainda sem que alguém provocasse espaços no meio do bloco húngaro.
E lá se foram indo os silêncios provocados: houve a primeira jogada construída pelos húngaros até à área portuguesa, com Ádám Szalai a arranjar espaço para rematar (50’) às mãos de Rui Patrício graças à escorregadela de Bruno Fernandes; e, com a apatia da seleção à perda de bola, tiveram Roland Sallai também a disparar para o guarda-redes português defender (57’). Os ruidosos nativos acordaram e acumulavam-se na origem dos decibéis, já nem as escadas de acesso aos lugares se viam por estarem cobertas de gente.
Quem me pagou o café por Budapeste, antes do jogo, disse também que “com estas equipas, se entras mole e dás alguma moral, vais passar mal, eles começam a ganhar confiança e não vai ser fácil ultrapassar” e o tempo nesta segunda parte deu-lhe razão, porque Salai, agora na área, desviaria uma bola cruzada da direita (69’) que perto passou do poste esquerdo da baliza de Portugal e acho que se segurasse um microfone daria para ouvir o que Fernando Santos pode ter dito em relação a isto. A Puskás Arena já era uma barulheira ininterrupta.
Nem ao silêncio temerário se chegou quando, pelo meio, a Hungria errou um passe na saída de bola, a seleção reagiu rápido e procurou deixar Bruno Fernandes com bola, à beira da área e sem incómodos. O médio disparou a bola e, afinal, a melhor parada de Gulácsi foi esta. Também seria a última, aos 68’.
BERNADETT SZABO/Getty
Seriam, de facto, 20 minutos de moral a ser canalizada para os húngaros que jogam e os que assistem e gritam. As vezes de Portugal com a bola redundavam, quase sempre, em circulá-la por fora, até alguém entrar nos últimos 30 metros de campo e a poder cruzar área dentro. Por dentro, já nem se veria William, que até ser substituído (81’) andou perto dos centrais, deixando Danilo ser o médio a tentar espreitar entre linhas quando, de entre eles, é quem menos apetência tem para tal.
E terá sido ele a ficar em campo até ao fim porque, quando se teve que decidir quem saía, a seleção estava em baixo, a contar minutos a defender, sem segundas bolas no cesto, a ter de se empenhar em muitas transições defensivas incluindo a que teve de ir atrás de Szabolcs Schön pela direita, até nada restar fazer depois de Pepe ser torneado e o remate do húngaro entrar na baliza (80’). Mas houve um fora-de-jogo a ser feito e confirmado pelo VAR.
A assobiadela monumental teve esperança de vida, muitos assobios se ouviram nos minutos seguintes, o pranto indignado dos caseiros a embalar o jogo à medida que a seleção portuguesa, após o susto, retornou à carga pelos mesmos meios. Até que, de novo, o silêncio, o silêncio e tanta gente dentro dele, quando mais um cruzamento, este de Rafa, fez a bola desviar num corpo adversário para ir ter com Raphaël Guerreiro, cujo pé esquerdo a rematou para outro ricochete nas pernas de Willi Orbán a encaminhar para um golo (84’). Danilo estendeu-se na relva, exausto, o esforço e o alívio a tombá-lo.
Aí o jogo acabou sem realmente terminar. Antes de os minutos se esgotarem seria Portugal a deixar o ruído das vozes a cambalear, o mesmo Orbán puxaria pela camisola de Rafa em relva proibida e o penálti seria para Cristiano Ronaldo se cobrir com outro recorde, além do que o já tinha como o mais europeísta dos Europeus (cinco torneios) - marcou pela décima vez (87’) na história da competição. E marcaria de novo (90’+2), a provocar e a acabar um tipo de jogada envolvente, com tabela, ao primeiro toque e pelo centro do campo que faltou à seleção durante todo o jogo.
Não se ouviram berros no final, nada, apenas o barulho dos holofotes já acesos. Mas o silêncio não pernoitaria tão cedo, os jogadores húngaros ainda arrastaram a desilusão para junto da tal bancada ruidosa, eles e todos os outros puseram a mão no peito e entoaram o hino nacional da Hungria mais uma vez.
Depois, sim, a ausência de som de uma arena a esvaziar-se, o silêncio a instaurar-se e no meio do qual, às vezes, também se descobre a ilusão de ser possível ganhar outro Campeonato da Europa, seria um a seguir ao outro e para serem berros de felicidade portugueses a rasgarem o silêncio, no final, um 3-0 é mais do que valioso. É neste silêncio que se impôs aos húngaros que também se vai buscar moral e confiança.