Euro 2020

E no fim ganham eles, mas não é por serem alemães. É por olharem sempre para cima

E no fim ganham eles, mas não é por serem alemães. É por olharem sempre para cima
Kai Pfaffenbach - Pool

Neste jogo, em Munique, a Alemanha também ganhou por muito ter olhado para Gosens, o ala esquerdo a quem quase todas as jogadas iam parar e de onde viriam os quatro golos (4-2) que derrotaram Portugal, sempre incapaz de arranjar forma de lidar com o plano em que os alemães insistiram, sem cerimónias. E o jogo com a França, daqui por dias, virou ainda mais fulcral do que já seria

Não queria ser fonte de maçada e virar mais um portador da lenga-lenga que junta os alemães com bola, nem sequer foram eles a inventar a semente germinador desse cliché, o lugar tão comum quanto o ar quente que se respira em Munique e escrevo-vos eu isto e o telemóvel acende-se. É alguém em Portugal a dar conta que foi à gaveta das meias para aquecer os pés, por isso, sim, entre cá e lá há diferenças, só nada têm a ver com uns serem portugueses e outros alemães.

O muitíssimo que os tantos tipos que jogaram pela fußball nationalmannschaft já ganharam terá certamente justificação no quão olharão para cima, sempre para cima, até o metro muniquense que vai para à Allianz Arena tem mapas colados ao teto das carruagens, é para cima que eles olham, afinal a cabeça mais próxima está dos limites que julga ter e esses não estão em baixo, no chão, na relva, onde de facto a Alemanha mantém a bola, mas para seguir em frente, campo acima, aos 30 e poucos segundos é assim que entra pela primeira vez na área portuguesa.

Pouco demoram a entrelaçarem maneira de a alcançarem de novo, tão cedo, quem tem Kroos e Gündoğan a tratarem do coração do campo também terá um tratado em cuidados dados à bola, são receções e decisões acertadas a toda a hora e, mais do que isso, são as mais apropriadas. Na mesma jogada em que descobrem o primeiro passe ao centro, entre linhas, também fazem o segundo que origina o cruzamento de Kimmich (5’) para Gosens. Os alemães marcam, mas este alemão estava fora de jogo.

Era o prenúncio de um sofrimento, mas um com tiques de calculismo, de quase ser expectável que a posse de bola fosse dos germânicos. É tão natural, até um pombo pousa na relva e tentar picar algo. Querem jogar e jogam assim há muito, têm recursos humanos de sobra para darem cabo de uma equipa que vá para cima deles e os pressione, alto e a todo o campo. Portugal não é essa equipa. A seleção é paciente, preocupa-se em manter-se num bloco unido, a chatear os outros apenas em certas zonas, em certos gatilhos - quando os dois da vida airada da bola têm uma receção de costas, ou quando Hummels, o mais central que mais dotes, a pode receber.

O a pouco e pouco dos alemães, o passe curto atrás de passe curto, é muita coisa de cada vez porque em toda a ação querem ir em frente, já sabemos que olham para cima e, especialmente, para o espaço que haja nas costas de Nélson Semedo. Não é de lá que os inofensivos remates de Havertz (10’) e de Müller (14’) surgem, mas esse é o lugar a que planeia chegar, está-lhes na cara: ou acumulam a jogada à direita para atraírem atenções e, depois, lançarem a bola para essas coordenadas; ou fixam Gnabry entre Pepe e o lateral português, estimulando-lhe a arrelia que demonstra por fechar a posição mais para o meio.

E, por momentos, isso é esquecível, há um canto germânico que a cabeça de Ronaldo livra da área portuguesa e a seleção olha imediatamente para cima, lançadora de uma transição em bisga que acaba com Bernardo Silva a cortar uma bola aérea para Jota, que a recebe sozinho na área e a toca para o fim do sprint de 100 metros do capitão. Tanto frenesim que o pombo voa para longe, é golo (15’) de quem esperou calculadamente para arrancar campo acima.

Danificados desta forma, após um canto que era deles e para eles precaverem, os alemães intensificam a gorda fatia da bola que já tinham. Injetam-lhe mais velocidade nos passes, forçam receções de Havertz ou Gnabry atrás dos ombros de William e Danilo e conspiram, a sua malandrice é imutável por não ser correspondida tão repetidamente. A dúvida é um caldeirão onde Nélson Semedo cai sempre, onde os alemães têm os olhos postos.

Eles não marcam e a culpa é da definição do que é um golo, são portugueses os derradeiros toques pré-entrada da bola na baliza, Rúben Dias é quem faz o primeiro (35’) e Raphaël Guerreiro (39’) quem desvia o segundo, últimos socorristas a tentarem anular as bolas vindas do pé esquerdo de Gosens que toda uma seleção não evita que lá cheguem. Estas não são as únicas bolas que o ala germânico recebe tão livre e já com a jogada tão acelerada que Portugal chega sempre atrasado a este prejuízo.

Os alemães insistem e sobrecarregam este plano, sem cerimónia. O sorrateiro pombo descansado da vida fica na relva, apenas se pisga assustado quando a irritação retira um esbracejar de Ronaldo ao apito intervaleiro do árbitro, Cristiano arranca logo para o balneário e retorna sem as mangas compridas, haveria de chegar o jogo em dia quente que lhe faria arejar os braços. Também Fernando Santos ressurge sem o casaco vestido, nem se senta, agora que tem Nélson Semedo nas redondezas do banco prefere ficar em pé.

Do mesmo lado já estava Renato Sanches, os jornalistas na Allianz Arena são deixados trabalhar bem perto do relvado, de quando em vez até se captam uns impropérios para o ar de quem estar a jogar, embora não chegue ao ponto de se escutar o que o selecionador diz, alerta ou corrige.

Pouco tarda, contudo, a dirigir-se ao recém-entrado - que já não é miúdo, mas que é o mais conhecedor deste estádio por, talvez, se ter mudado para Munique ainda com demasiada miudagem de vida. Renato não detetou a tempo que a seleção falharia, de novo, a controlar a largura de jogo da Alemanha e a acelerar um passe para Gosens, que voltaria a meter a bola na área. Desta vez, Havertz fez o 3-1 ser germânico (51’) e já não haveria sinal da presença columbófila na metade do campo onde estivera.

Porque os alemães não chegam ao fim a ganhar por serem alemães, essa pepita preconceituosa fica no ouvido, é agarrável, mas não nasce no campo. Os alemães vencem é por serem tão decididamente marteleiros como aqui, tão mecânicos a cingirem-se à ideia certa que trouxeram e a massacrarem o adversário, usando-a com uma eficácia absurda. Por insistirem ao ponto de a incapacidade de Portugal em lidar com a sua intenção durar cerca de uma hora.

Nem quando acrescenta um jogador à última linha retirar as dúvidas a Nélson Semedo quando, antes, tudo falha, a seleção evita a tragédia anunciada. Rafa já fecha para lá do lateral, à direita, quando outra jogada é canalizada para o centro de todas as atenções - e Gosens salta de rompante, com o embalo de todo uma estratégia, para cabecear o quarto golo (60’). Fosse esta ocorrência um combate, a tareia seria desferida sempre com um gancho de esquerda.

Logo de seguida, Joachim Löw concede a simpatia de substituir este alemão que não nasceu holandês por poucos quilómetros. E a Alemanha, quiçá por não o ter, ou talvez por também se passar a comportar de forma pouco alemã, abranda a sua gestão das coisas.

Porque a gerência das coisas continuaria a pertencer-lhes, mesmo com Rafa a fazer as vezes de penso rápido na direita e Renato, no centro do campo (é lá, onde se ditam as rotundas e entroncamentos para as jogadas, que o médio sem pudores mexe com as coisas), a melhorar a organização ofensiva da seleção. O que Portugal atinou jamais indiciou que a gestão do jogo deixasse de ser da Alemanha.

Nem o livre curvado para a área por João Moutinho, pingado ao segundo poste onde Ronaldo o resgatou para Jota o carimbar (67’) já quase na baliza, alterou esse estado das coisas.

A seleção nacional inspirou mais vezes com a bola, a resistência que há em Renato a quem lhe tente roubar a bola é oxigênio para a equipa, mas, para expirar esses proveitos no campo nada mais houve a não ser um bruto remate do médio das rastas, a fúria no seu pé direito a bater a bola contra o poste (78’) após a receber, num canto curto.

E a Alemanha, mesmo já sem reincidir na estratégia que revestiu Gosens da provável melhor exibição até este dia, neste Europeu, continuou a aproximar-se da área a preceito, se bem com mais parcimónia. Para cima dos adversários e para a frente no campo jogam os alemães, por isso são tão, mas tão alemães, a carregarem até ao brutamontes de seu nome Goretzka dar o troco em matéria de ferros e disparar uma bola à barra (83’) da esperança portuguesa.

À seleção faltou engenho e operância para lidar com as fragilidades que a Alemanha lhe identificou e castigou, aquém também ficou de ter mais bola e de fazer mais faltas quando já era tarde para se fazer as coisas limpas, coisas que a voz de Fernando Santos lamentaria no final. “Não vai ser nada fácil”, disse, de manhã, um campeão mundial e europeu de outras eras, que a sorte pôs no mesmo hotel de quem martela este fim de crónica no estádio onde ele já estivera, há dias - “a Alemanha é sempre a Alemanha”, acrescentaria.

É-o ter feito o que fez Portugal e fê-lo por sempre olhar para cima e querer ir para cima, até quando nos ilude a todos pela acalmia que dá à bola. E os outros, no fim, perdedores e cansados e calculadores de pontos de tanto terem corrido atrás dela. A seleção nacional perdeu ao fim de oito jogos em fases finais de Europeus. De repente, olhar bem lá para cima e não perder com a França daqui por dias, em Budapeste, virou bem mais fulcral.

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