Euro 2020

Não perguntem a Robert Pirès sobre a seleção portuguesa: "Gosto sempre muito de Portugal, o problema é esse. Também sou português"

Robert Pirès esteve naquela meia-final de 2000, quando a França eliminou Portugal com um golo de ouro no prolongamento
Robert Pirès esteve naquela meia-final de 2000, quando a França eliminou Portugal com um golo de ouro no prolongamento
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As conversas também surgem por sorte e encontrar um ex-campeão mundial e europeu no pequeno-almoço do hotel só pode ser boa fortuna. O simpático Robert Pirès, a expressar-se no seu português com sotaque, não gosta que lhe perguntem sobre Portugal quando em causa está um jogo contra a França, mas, em entrevista à Tribuna Expresso ainda em Munique, explicou por que não critica jogadores na televisão, admitiu a sua preferência por Bruno Fernandes e lembrou como "não é fácil" para os futebolistas passarem semanas sem "a fórmula vitamínica" que é verem as famílias de vez em quando

Munique simpatiza com o calor, logo pela manhã a temperatura é trintona nos graus centígrados. O ar livre atrai o pequeno-almoço, bendita a esplanada do hotel e melhor ainda quando nem todas as cadeiras e mesas estão preenchidas. Há sempre quem prefira reclusão das paredes, espaço sobra para os que se importam pouca em ficar à vista de toda a gente, serenos da vida, acabados de esvaziar uma chávena de café.

A barba com dias de vida tapa-lhe o queixo no qual assenta o olhar meio. Robert Pirès está sentado, sozinho. Já não sou o primeiro jornalista a ceder ao empurrão da sorte e a chateá-lo, mas fortuna não o maça. "Claro, senta-te, por favor", solta no seu português cheio de tiques franceses, sotaque que o acompanha durante toda a conversa.

O francês que é meio português pelo pai, e meio espanhol devido à mãe, foi inteiramente gaulês em 2000, quando esteve no campo onde Portugal saiu nas meias-finais do Europeu, com aquele penálti de Zinedine Zidane no prolongamento. Também estava no Stade de France, em 1998, a vencer um Mundial. Também foi um dos Invincibles do Arsenal, entre 2003/04, quando ainda deslizava pelo campo com o seu ar de mosqueteiro.

E, de repente, ei-lo em Munique, feliz e descontraído da vida com 47 anos e no dia do Portugal-Alemanha, a cumprir deveres de comentário televisivo "sem sentir pressão" e cumprindo um juramento que "toda a gente" em França já lhe conhece - "não gosto de criticar, porque sei o que é falhar uma receção ou um passe".

Mas, se for para conversar, analisar e até galhofar, o francês está a postos. A sortuda manhã também puxa Thomas Gravesen para a esplanada do hotel, furtivo na pala do boné e pançudo na t-shirt, que o tenta prender à palavra de irem beber umas cervejas mais logo. Robert Pirès também o finta hoje em dia, mas, sobre o dinamarquês que alcançou a galáxia do Real Madrid, relembrou a "muita porrada, muita porrada" que dava. Está servido o pequeno-almoço.

O que estás aqui a fazer tão descansado?
Estou a trabalhar com um canal da televisão francesa que se chama M6, muito famosa em França, e estou contente, porque viajamos muito, já estivemos em São Petersburgo, em Amesterdão, duas vezes aqui em Munique, em Roma também e na segunda-feira vamos para Londres.

Um pouco cansativo, não?
É a vida de um trabalhador [ri-se], é bom, eu gosto muito.

Gostas de comentar e analisar jogos?
Sim, mas não é fácil, porque gosto muito de jogar e quando estou a ver os jogos dá-me vontade de jogar. Mas pronto, agora tem de ser, é outra vida.

Sentes-te confortável para criticar, além de analisar?
Gosto de analisar, mas criticar não. Não posso, porque sei o que um jogador pode pensar se falhar uma receção, se falhar um passe ou falhar um penálti. Eu sei o que isso é e não é fácil, então não gosto de criticar. Posso fazer uma análise e é isso que faço. As pessoas da televisão francesa já sabem que eu não critico. Não posso [risosl]. A gente não sabe, ou não quer saber, o que os jogadores estão a sentir. Muita e muita gente pensa que, por jogarmos futebol e ganharmos muito dinheiro, tudo é fácil - e não, não é fácil. As pessoas não sabem que temos muita pressão se jogarmos pela França ou por Portugal. Não sabem se o jogador dormiu bem, se está doente. São coisas pequeninas que de vez em quando podem acontecer.

E agora com a pandemia e as bolhas sanitárias, nem podem ver as famílias durante semanas.
Isso é o mais complicado. Eu falei com os jogadores franceses e não é nada fácil. De vez em quando é bom, quando tens um dia off vais ver a família e os miúdos e isso é como se fosse uma fórmula vitamínica, sabes? Agora não se pode por causa do tema do vírus e as coisas ficam ainda menos fáceis.

Como vês a seleção portuguesa neste Europeu?
Eu gosto muito, esse é o problema, porque gosto sempre muito de Portugal [mais uma gargalhada], não me podes fazer essa pergunta! A gente sabe que sou francês, joguei com a seleção francesa e ganhámos, mas também sou português e espanhol também, porque a minha mãe é espanhola. Então fico contente por Portugal ainda ter uma boa equipa. Não sei o que vai acontecer no resto do Europeu, mas digo que Portugal é um dos favoritos para ganhar de novo. Esta equipa tem muita, muita qualidade, e tem muitos, muitos bons jogadores.

Mas a pressão que lhes colocam agora é maior do que há cinco anos.
Penso que esta equipa é melhor do que a que ganhou em 2016, porque, para mim, Portugal tem um jogador que é dos melhores. Já sabemos que há o Cristiano Ronaldo, sim, isso já é normal, mas também têm o Bruno Fernandes. E quando tens um jogador como ele podes ter muita ilusão. Gosto muito de jogadores como ele e o Kevin de Bruyne, da Bélgica, porque jogam para a equipa, não é a equipa a jogar para eles, percebes? Gosto bastante deste tipo de jogador.

E a França?
A França está melhor. Qualidade temos, se somos os melhores, não sei, isso são os que chegam ao fim e ganham a competição. Claro que temos muita qualidade individual, mas quando estão no campo é diferente. Hoje [a conversa acontece no sábado, 19 de junho] vamos jogar contra a Hungria, vai ser complicado, jogamos às 15h, com calor e o estádio vai estar cheio, as coisas podem complicar. Depois jogamos contra Portugal e pode ser como uma final para decidir quem fica no 1.º lugar.

Quem não ganha à Hungria dificulta um pouco as suas contas no grupo.
Já sabemos que o jogo será complicado para a França, vimos o que aconteceu com Portugal, foram 80 minutos nada fáceis. Jogas contra uma equipa em que todos os jogadores estão lá atrás. Podes ser a França e podes ter os melhores jogadores, mas não sabes o que vai na cabeça deles num estádio cheio, com o ruído, já faz mais de um ano em que os estádios não estão cheios de adeptos. É outra força para a Hungria.

Achas que a Alemanha já não é a Alemanha do costume?
Sabes, acho que, mesmo perdendo connosco, acho que a Alemanha jogou bem. Não teve a sorte de empatar, nessa noite a França jogou bastante bem atrás, sem bola, e tivemos muita velocidade no contra-golpe com o Mbappé, o Dembélé e o Coman. Ganhámos, mas sofremos muito. Estive no estádio a trabalhar e foi sofrer até ao final. A Alemanha é sempre a Alemanha, podem estar em renovação, sim, mas jogam em casa e este estádio é muito apertado, os adeptos estão perto do campo, para mim é um dos melhores. Faz muito barulho lá dentro e isso ajuda muito os alemães. Claro que o meu canal de televisão vai fazer o jogo, porque em França temos muito português [ri-se outra vez]. A Alemanha é a Alemanha, não pode falhar.

("Portugal vai ser complicado hoje, hein? Vai ser um jogo muita bom", solta, fatiando a conversa com uma bola de cristal que se revelaria acertada.)

Tens gostado de mais alguma seleção?
Gosto muito da Bélgica, da Itália não sei, jogam bem sim, também estive no encontro contra a Suíça, mas agora quero vê-los contra Portugal, França, Bélgica ou Holanda. Estou contente pela forma como vejo os italianos a jogarem, só que já é outra história se tiveres de jogar contra estas seleções. Tenho gostado da Itália, mas não a considero uma favorita - para mim, é França, Portugal e Bélgica. Este último jogo, contra a Dinamarca, jogaram muito mal na primeira parte, uiii... Foi fraco, fraco. Depois entrou o De Bruyne, o Witsel e o Hazard, e o Hazard, vais ver, hoje pode estar a 50%, mas vai estar sempre a aumentar o nível. É preciso ter muito cuidado com a Bélgica.

Falas muito de futebol com os teus pais?
Com o meu pai sim, sempre. Está contente porque Portugal ganhou, mas agora está nervoso porque sabe que vai ser complicado contra a Alemanha [ri-se, mais uma vez]. E o meu primo, que é português e vive em Lisboa, está assim [faz o gesto com a mão que remete para o receio], a sentir muita pressão. Mas está sempre a dizer que o jogo que quer muito ver é contra a França.

Dado o que acontece em 2016 e em Europeus anteriores, tem mais emoção à mistura.
Sim, e eu gosto muito, porque cada vez que jogamos contra Portugal tu sentes essa rivalidade, mas é uma boa rivalidade. Eu joguei aquela meia-final [em 2000] e Portugal tinha sempre bons jogadores. Lembras-te em 1984, em Marselha, quando ganhámos 3-2 no Velódrome? Eu vi o jogo. O França-Portugal é sempre um jogo muito bom e com boa rivalidade, é desses que eu gosto. Há muita picardia, eu gosto, já sei que esse jogo vai ser complicado para mim. Os franceses agora também já sabem que será complicado jogar contra os portugueses, já não pensam noutra coisa. Sabemos que vamos encontrar muita qualidade.

Tu deixaste de jogar já depois dos 40. O Pepe tem 38 anos e continua a ser titular da seleção. Como é possível?
É incrível. Quando estava no Goa, da Índia, tinha 41 anos, mas pronto, era o Goa. O que o Pepe está a fazer é muito forte. E ao lado dele tens o Rúben Dias, que é muito bom, e além deles tens o José Fonte.

Tinhas conseguido jogar um Europeu quando tinhas 38 anos?
Eu queria [risos], o treinador é que não quis! Estava no Aston Villa. Se tens um físico como o do Pepe, então sim, tens de jogar, eu digo sempre aos jogadores que, se puderem e conseguiram, então que joguem até aos 40. O futebol é muito bom.

O Gábor Király, antigo guarda-redes húngaro, jogou no último Europeu com 40 anos e disse-me que ainda estava com a motivação lá em cima.
Se tens o físico e a motivação, tens de continuar. É muito difícil deixar o futebol, principalmente se não tiveres um plano do que vais fazer a seguir. Não é um tema fácil. Eu joguei durante 19 anos e quando tive que o deixar, ufff. Foi muito difícil. Nunca pensei ser treinador, diretor-desportivo talvez. Ser treinador é pior do que ser jogador. Há cinco meses falei com o Arsène Wenger sobre isso e até ele me disse que é muito árduo. Claro que é um bom trabalho, mas é muito exigente. Um treinador tem de chegar primeiro e ser o último a sair, além de que tem de pensar em tudo - a tática, as sessões de treino, o jogador que está lesionado, o jogador que não está contente, o representante do jogador, porque liga ao treinador e pergunta porque é que ele não joga. Comentar na televisão é mais relaxado, agora já não tenho mais pressão. Estou aqui no hotel, tranquilo, tenho o dia livre até ao jogo, vou prepará-lo e ler sobre os jogadores portugueses e alemães, mas estou sempre tranquilo, não sinto pressão.

E escrever para um jornal?
Isso não, neste momento trabalho para a televisão e também para uma rádio em França, quase todas as manhãs, é mais exigente. Mas é melhor assim do que estar em casa sem fazer nada, isso não consigo. É uma nova vida, é uma boa vida.

Achas que devíamos ver mais jogadores ainda no ativo a irem comentar e analisar futebol à televisão?
Pode ser, sim, mas os futebolistas não querem. Depende do jogador, claro, e da personalidade dele. Além de que a sua federação ou clube pode não querer.

No canal alemão que transmitiu o Inglaterra-Escócia, no fim do jogo estava em estúdio o Christoph Kramer, que foi campeão mundial com a Alemanha em 2014 e joga no Borussia Mönchengladbach, 8.º classificado da última Bundesliga.
Claro, claro, e também estava lá o Per [Mertesacker], mas ele já não joga. Se a televisão pode ter pessoas assim, obviamente que é bom, só que a federação ou os clubes podem preferir que não vão lá.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt