Euro 2020

Não vale mesmo a pena ir para a estrada com a senhora sorte

Não vale mesmo a pena ir para a estrada com a senhora sorte
Baptiste Fernandez
O jogo de Portugal com a França terminou ao ralenti, sendo uma amostra de futebol inofensivo porque o 2-2 servia a toda a gente, alemães incluídos. Cristiano Ronaldo marcou dois penáltis, já é quem mais golos tem (109) por uma seleção e esta, nestes 90 minutos, esteve em 1.º e 2.º lugar do grupo e até fora do Europeu, mas, pelo segundo torneio seguido, está nos oitavos-de-final graças a ser um dos melhores terceiros. Porque, neste jogo, lutou contra o incontrolável

É capaz de ser das acusações mais desbaratadas que por aí andam, a sorte, eu tenho-a na Hungria e sortudo sou por estar a ver pontapés na bola no Europeu, ou é aqueloutro que a tem porque, se calhar, está a ler isto refastelado em alguma praia do Pacífico, onde faz sentido haver o calor abafante que há em Budapeste; mas, factualmente não sabemos. A sorte tende a existir mais no dedo de quem a acusa, sei lá se quem salteia a pele no mar não o faz para fugir à perda de um familiar, sabemos lá nós se os dadores de palavras se sentem afortunados por o trabalho os afastar de quem precisa deles.

A sorte tem bastante de pretensiosismo entranhado, de falarmos do que não sabemos e a ignorância botar a nossa confiança inteiramente no que vemos. E, desde o sábado da chamada à terra em Munique até ao forno ligado da Puskás Aréna, esta quarta-feira, vimos um progressivo alinhamento dos planetas, uma encadeada “combinação de circunstâncias que influem de um modo inelutável” que, sim, são sorte. Seja no nosso dedo ou de quem está ali em baixo no relvado, é sortudo o contexto que deixa a seleção a saber que até pode ser derrotado por três golos à maior e, mesmo assim, sobreviver.

Devido a futebóis não influenciáveis por franceses ou portugueses uns jogam já apurados, quem sobra joga pela qualificação e o jogo começa por ser um rame-rame de passes confortáveis, uma ladainha de posses de bolas estéreis que não aproveitavam a abundância de vezes em que alguém tinha a bola na metade do campo dos outros e vivalma surgia a pressionar num raio de dois metros. Esse privilégio avistou-se no campo durante quase toda a primeira parte.

Fosse Varane ou Kimpembé, ou Pepe e Rúben Dias, os centrais eram o cúmulo do à vontade em ações com bola, todos com liberdade a preceito para construírem e ligarem passes aos médios e a brasa era mais puxada à sardinhada diferença que Portugal preparou para a França. Agora havia o barómetro de boas decisões de João Moutinho a pedir a bola em lugares certos e a resistência a ladrões de Renato Sanches, sobretudo ele, a potência física dele a ir chamar jogadas à esquerda e a ser por ali que a seleção chegava à área.

Um e outro francês fazia-lhe o obséquio de encostar o corpo e cair no engodo do contacto, Renato vira ou livrava-se da presença alheia e criava um desequilíbrio. Ele ou Bernardo Silva, na direita, sempre um foco ludibrioso de atenções para soltar Nélson Semedo em direção à linha, ou arranjar espaço para procurar passes em Ronaldo ou Jota. E a seleção acercava-se, Moutinho rematou (34’) de longe com o pé esquerdo e depois (41’) com o direito, foram amostras frouxas, mas antes já houvera dureza.

Um livre em que a bola foi curvada para a área pelo mesmo pé, do mesmo médio português, fez a cara de Danilo colidir com uma murraça e ainda uma cotovelada do guarda-redes Lloris. Ouviu-se um silvo, escutou-se depois o grave “sííí” dos adeptos portugueses na aterragem de um Cristiano Ronaldo celebrante por converte (31’) o penálti que, de repente, deixava Portugal a só poder olhar para baixo no grupo.

Porque antes, pelos 10 minutos, prestou-se ouvidos à barulheira de uma maioria, quase todo um estádio a torcer por uma equipa que não está - a Hungria marcara à Alemanha, a sorte aparecia noutras freguesias sem ser vista, ou ouvida.

Nem o golo alheio, nem o golo de Ronaldo mudaria o jogo. A seleção ainda teria uns quase 10 minutos de embelezamento de jogadas, toques bonitos a surgirem e jogadas desafogadas, mas continuava a bem receber os franceses no seu meio-campo, especialmente o tipo que corre aos saltinhos e a desengonçar os ombros. Deixar Pogba virado para possibilidades de passe, sem incómodos, já valera uma bola para Mbappé se gazelar nas costas de Semedo e só Rui Patrício parar o remate (16’) da ameaça maior da França.

O intervalo já estava à vista quando, outra vez, Pogba foi deixado à vontade para matutar sobre um passe, viu uma diagonal de Mbappé e a bola que lhe pôs causou o choque entre o francês e Nélson Semedo. Outro sibilado, novo penálti e Benzema empatou (45’+2), os corpos foram-se refugiar do calor e talvez não matutar o suficiente sobre lições a serem aprendidas.

Era das primeiras posses de bola da França em quintal português, na segunda parte, e Pogba a usufruir da veleidade de ter o tempo e o espaço que melhoram qualquer futebolista. O médio melhorou-se, todo peito feito a desenhar um passe rasteiro e com efeito para acabar diante da corrida de Benzema, ele também perito em desviar a bola de Rui Patrício como o fez (47’) se abandonado desta forma, no lado cego do defesa central. A sorte via-se ao espelho e o reflexo devolvia o irmão azar a Portugal.

Isso chamamos a uma cadeia de circunstâncias que não controlamos e contra a qual somos incapazes de lutar se influi a nosso desfavor. Até podia ser a mesma, e era. A seleção já estivera em Bucareste, espreitara um pouco de Londres e a virtualidade fê-la, durante cerca de 15 minutos, uma estrangeira ao Euro, erradicada do torneio pela força dos acontecimentos. E os franceses, vendo a ferida entreaberta, fizeram pingar não álcool, mas alguma água-oxigenada, que arde embora não tanto e eles impuseram algum sofrimento a Portugal, só que não muito.

Tiveram mais bola, souberam colocar os portugueses a correrem atrás, algo perdidos e sem forma de a reclamarem para, ao menos, tentarem tomar o controlo da ocorrência a que poderiam deitar os pés; não havia maneira de tentarem não depender de outros campos. Conseguiram-no, com tino, quando a bola foi ter com Ronaldo na margem esquerda da área e o capitão encarou Jules Koundé, que o aguardava de braços abertos e a bola do português bateu-lhe num deles. Outro penálti apitado.

Foi na sauna de Budapeste que Cristiano e as suas costumeiras mangas compridas igualaram (60’) os 109 golos de Ali Daei. O recorde rapidamente saiu do Irão para, daqui, colocar a seleção em Sevilha, a miscelânea esquizofrénica de próximos destinos a trocar demasiadas vezes para um só jogo de futebol. Não muito depois, o estádio ruía de novo, sentimo-lo a tremer nos pés quando o anfiteatro de húngaros gritava com novo golo da equipa que não estava em Budapeste, mas a marcar outro golo em Munique.

Ocorreu num minuto, pareceu uma família de segundos mais numerosa do que apenas sessenta, o êxtase dos húngaros na arena misturou-se com o alívio audível dos portugueses nas bancadas. Abafá-los-ia depressa, mas até os engolir escutaram-se gritos por Rui Patrício quando ele acreditou que podia voar e alcançou o remate de Paul Pogba, uma vez mais este francês sem alguém a importuná-lo; a bola que o guarda-redes tirou do ângulo da baliza foi salva, mas não salvaguardada, um só homem nem sempre dá para tudo e, ó não, um ‘ó não’ por certo houve no ar. Haveria recarga de Griezmann.

Mas Rui Patrício não, desfez-se da humanidade por um instante e fez-se um esteio como já tanto foi em verões passados. Pararia a bola vinda do avançado gaulês (68’). O jogo não acabaria, sobravam ainda uns 20 minutos, mas quase que terminou ali com um armistício não assinado, uma paz latente para colocar de parte a bagagem acumulada de há cinco anos. A cada minuto, os jogadores portugueses pareceram querer controlar o controlável.

E foram minutos de tentativas de passes longos para uma área, bolas esperançosas levantadas para a outra e os franceses a alinharem no suavizar das hostilidades. A partida ficou um sucedâneo de toques bonitos (Mbappé a driblar corpos), momentos para bruás sem consequência (a cueca vestida por Palhinha a Pogba) ou desarmes e cortes corajosos (também Palhinha, um dos melhores no campo desde que passou a pisá-lo, ao intervalo).

Mais ainda se deixaria o jogo em ralenti quando, nas barbas dos 90’, se soube que os alemães tinham empatada em Munique. Os minutos que restavam e os que serviram de desconto foram um comedimento coletivo, um encolher de ombros de vinte e dois futebolistas enquanto Fernando Santos gesticulava à frente do banco de suplentes. O 2-2 servia, para quê arriscar um ataque que sorria mais um golo se a consequência poderia ser um contra-ataque e Rui Patrício, por acaso, ser apenas um homem?

As duas seleções terminaram mansas, o jogo acabaria de orelhas baixas. França seguirá com o primeiro lugar para Bucareste, os alemães viajarão até Londres e a estrada deste Europeu espalhado por 11 países fará Portugal ir parar a Sevilha (jogará domingo, contra a Bélgica). A seleção preferiu jogar o que lhe restava na fase de grupos com o controlo possível, com a garantia de este ser o laçarote no que outros acontecimentos já tinham meio que embrulhado.

Afinal, nem todos podem ou querem conduzir com a senhora sorte no banco do lado, Tom Waits cantava-o assim, sei-o eu porque alguém de quem preciso e que agora precisará de aguardar mais um pouco me pôs, um dia, a ouvi-lo. Pelo segundo Europeu seguido, a seleção nacional está nos oitavos-de-final graças a um 3.º lugar na fase de grupos.

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