Euro 2020

Lobanovskyi está no meio de nós

Lobanovskyi está no meio de nós
Matthew Ashton - EMPICS

Foi o grande revolucionário do futebol soviético que recorreu à ciência e à matemática para desenvolver um método de treino inovador. Um mestre ucraniano para futebolistas como Shevchenko, que fala em Valeriy Lobanovskyi como o "deus do futebol da Ucrânia". Este sábado há Inglaterra-Ucrânia (RTP1, 20h)

Quando Valeriy Lobanovskyi, um atrevido e anárquico extremo esquerdo, ajudou a ganhar o primeiro título da história do Dynamo Kiev, não se mostrou muito entusiasmado perante uns reparos e perguntas de um cientista que outrora havia jogado futebol amador: “Um sonho realizado deixa de ser um sonho”. Tinha 22 anos.

Lobanovskyi nasceu em Kiev, em 1939, e o plano da vida laboral tinha no horizonte a profissão de canalizador. O pé esquerdo foi mudando o vento. A vida de futebolista no Dynamo precipitou-se num vazio quando chocou, por razões que não estão claras, com Viktor Maslov, que terá sido o pioneiro do 4-4-2 (evolução do 4-2-4) e do pressing. O jovem Valeriy, malandro com a bola no pé, terá levado algumas lições na bagagem.

Pendurou as botas aos 29 anos e rapidamente recebeu um gabinete e um banco para meter em prática algumas das ideias que tinha naquela mente brilhante, sendo uma delas um princípio inegociável: o coletivo estaria sempre acima do individual. O Dnipro subiu de divisão com este homem e instalou-se entre os grandes da liga soviética. Foi durante esta era que o treinador conheceu Anatoly Zelentsov, um jovem académico do Instituto de Ciência Física de Dnipropetrovsk, com quem inventaria um método de treino inovador.

Em 1973, chegou ao banco do Dynamo Kiev e revolucionou o futebol soviético, ucraniano e o mundo de muitos futebolistas. O estilo de jogo era calculista, preciso, rápido, físico, com muitos contra-ataques e uma pressão asfixiante, normalmente nos períodos iniciais e finais dos jogos. Via-se também uma posse de bola defensiva, para quem sabe deixar o rival dormente e depois sacudi-lo com um ataque rápido e venenoso. A geometria importava, os jogadores tinham de saber como atuar em cada quadradinho do terreno que lhes dizia respeito. A condição física era chave, por isso relatam-se gloriosas tareias nos futebolistas.

Peter Robinson - EMPICS

Zelentsov, o tal académico, seguiu com ele para Kiev e foi aqui que se vislumbrou uma das maiores revoluções no futebol: a ciência entrou em campo.

Prepararam jogadores individualmente, desenvolveram testes com recurso à tecnologia, calcularam cargas físicas, tudo para antecipar e controlar o desempenho dos futebolistas. Numa era do avanço da informática e do otimismo na União Soviética, os computadores foram usados para calcular as áreas do campo, as ações e a velocidade dos jogadores, quanto tempo passavam naquela área específica, como é que os atletas se apoiavam uns aos outros quando saíam de posição, com e sem bola. Lobanovskyi, que já tinha um homem para a estatística, foi mais além e quis estudar os efeitos da bola, os caprichos da mesma, descascando até a folha seca de Didi, um médio genial da seleção brasileira dos anos 50 e 60.

Enfim, um pouco de 2021 na década de 70.

“Se olharmos à época, é algo completamente inovador. Um treinador preocupar-se mais com o aspecto físico, ou seja, com saber o que cada jogador podia dar, é algo revolucionário”, conta Joel Amorim, um tradutor e especialista em futebol russo. “Estamos a falar dos anos 70. Foi uma mudança fantástica no futebol daquela altura. Percebeu que os jogadores tinham limites físicos e que não podiam ir além de determinados níveis de carga física.”

Ao método, alimentado por boas fornadas do clube e um orçamento importante, mais uma disciplina de ferro, juntaram-se os troféus. Muitos. A sua carreira foi sendo salpicada com alguns períodos na seleção da União Soviética - por exemplo, falhou o apuramento para o Euro 1984, caindo contra Portugal, depois de um penálti que terá sido mal assinalado, pois a falta ocorreu fora da área.

A desilusão no Campeonato do Mundo de 1986 levou o selecionador soviético a ir por outro caminho em 1988. “Depois daquele descalabro contra a Bélgica, a União Soviética acabou por ser eliminada numa fase prematura da competição ['oitavos']. Havia uma confiança reinante na equipa de que poderiam chegar à final. Os jogadores estavam convencidíssimos disso, o próprio Lobanovskyi também estava”, explica Joel Amorim.

Adeptos do Dynamo Kiev, em 2013
SERGEI SUPINSKY

E continua: “No Euro 1988, a base da equipa é o Dynamo Kiev porque Lobanovskyi quis rodear-se daqueles jogadores em quem tinha maior confiança e com quem tinha rotinas de jogo já criadas. Era mais fácil para ele trabalhar com uma equipa que já conhecia os processos, no fundo foi transpor o que tinha no Dynamo para a seleção soviética. Na convocatória, salvo erro, só sete ou oito jogadores é que não eram do Dynamo Kiev. É muito fácil perceber a influência de origem ucraniana nessa seleção soviética”. A URSS chegou à final com a Holanda, mas, apesar de valente e pressionante, acabou por perder.

“Lobanovskyi é, sem dúvida, alguém de quem tu ouves falar na Ucrânia”, revela Vítor Severino, adjunto de Luís Castro, uma dupla que esteve no Shakhtar Donetsk nas últimas duas épocas, um clube onde Valeriy terminou a carreira de futebolista. “É uma figura absolutamente respeitada e de quem os ucranianos falam sempre com muito carinho e, acima de tudo, orgulho. Falar de futebol ucraniano é falar de Lobanovskyi. No centro da cidade ainda existe o mítico estádio Lobanovskyi, com a estátua do mestre na entrada principal, a casa original do Dynamo e onde ainda se realizam muitos jogos da primeira divisão ucraniana.”

E acrescenta: “É muito comum ouvir expressões como ‘isso só no tempo do Lobanovskyi’ ou ‘já o Lobanovskyi falava sobre isso’. É incontornável e sem dúvida algo que se sente na Ucrânia. A sua memória é muito respeitada por todos, independentemente das cores de cada um”.

Apesar dos feitos importantes na Europa, Lobanovskyi nunca conquistou uma Taça dos Campeões Europeus ou Liga dos Campeões. Chegou, ainda assim, a sentir um pouco da gloriosa brisa europeia quando alcançou três semi-finais desse torneio (1977, 1987 e 1999), sendo eliminado em todas elas, uma delas com o FC Porto de Artur Jorge.

E foi por isso que, quando o AC Milan venceu aquela competição, em 2003, Andriy Shevchenko foi até Kiev para exibir à sua referência aquele pedaço de prata bonito e orelhudo (fez o mesmo com a Bola de Ouro). O seu mestre tinha morrido em 2002.

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Uns anos mais tarde, Sheva explicou o gesto: “Lobanovskyi é o deus do futebol da Ucrânia, é a pessoa mais importante, é o pai do futebol ucraniano. Costumávamos chamar-lhe ‘o general’. Eu era jovem quando o conheci, o meu jogo era muito egoísta. Explicou-nos, a cada um de nós, o que significava trabalhar num grupo. Mudei muitíssimo a minha visão do futebol. Ajudou-nos a compreender que, com concentração, vontade e espírito de grupo, pode derrotar-se qualquer adversário, mesmo que seja muito mais forte do que nós. Influenciou-me de muitas maneiras: primeiro, mudou a minha visão do jogo; depois, mudou a minha maneira de pensar, como pessoa. Era um grande filósofo. O futebol era a vida dele. Morreu no banco, durante um jogo. Nunca ganhou a Liga dos Campeões e penso que esse era um dos seus grandes sonhos. Por isso, quando a ganhei, levei a taça para a Ucrânia, ao estádio do Dynamo, à estátua de Lobanovskyi. Como um dos seus alunos e o primeiro jogador ucraniano a vencer a Champions, queria prestar-lhe uma homenagem por tudo o que fez por mim”.

Hoje, Shevchenko é o selecionador da Ucrânia que conta com 10 jogadores do Dynamo Kiev na convocatória do Euro 2020, onde já alcançou os quartos-de-final, algo inédito na história daquele país. Só oito jogadores dos 26 não atuam na Ucrânia, o que fala bem da qualidade do campeonato e consequentemente do que se vai fazendo na formação. A Ucrânia venceu o último Mundial sub-20, em 2019.

Joel Amorim vê algumas semelhanças na ideia de jogo de Sheva e do seu mestre. “Se olharmos para o Dynamo dos anos 90, Lobanovskyi mantém um estilo defensivo e o libero. Mas, aos poucos, esse esquema que era uma espécie de 4-4-2 vai-se transformando num 3-5-2. É aqui que encontro um certo paralelismo com a Ucrânia de agora, do Andriy Shevchenko. Vejo esta equipa numa espécie de 3-5-2, muito próxima do Dynamo do final dos anos 90. Shevchenko fez parte dessa equipa. Talvez seja isso que Shevchenko tem presente, é provavelmente aí que vai buscar a sua influência.”

picture alliance

Antes de treinar naquele país do Leste, Vítor Severino privou com o agora selecionador ucraniano num estágio do Shakhtar em Portugal, que culminou num jogo contra o Rio Ave. O treinador português não está surpreendido com o que está a acontecer no Campeonato da Europa.

“É uma pessoa de trato fácil e muito dedicado à sua profissão de selecionador. No Shakhtar também era normal vê-lo no centro de treinos em alguns momentos, no estádio, e nos training camps. Tínhamos contacto regular com alguns elementos da equipa técnica da Ucrânia e existia partilha saudável de ideias e informação sobre os jogadores. O feedback dos jogadores era muito positivo, pelo espaço familiar que era criado na seleção e pelo estilo de liderança. Sem dúvida que ele tem mérito por tudo o que a Ucrânia tem feito nos últimos tempos”, garante. O clube de Donetsk tem sete jogadores no plantel do Europeu.

E finaliza: “Estamos a falar de dois grandes grupos de jogadores com ideias de jogo nos clubes absolutamente distintas, e de uma equipa técnica liderada pelo Shevchenko com assistentes italianos, entre eles o [Mauro] Tassotti. Todas estas dimensões, associadas à qualidade dos jogadores, acho que têm contribuído para a flexibilidade tática e estratégica que a Ucrânia tem vindo a demonstrar. Não fiquei surpreendido com os resultados nem com a qualidade competitiva, acho que é e será uma seleção com muita qualidade e potencial para o futuro”.

Shevchenko, quando o Dynamo eliminou o Real nos 'quartos' da Champions (1999)
Etsuo Hara

Em entrevista ao “The Athletic”, em junho de 2020, Shevchenko voltou a referir a tremenda influência do ex-selecionador soviético. “Ele foi mais um professor do que um pai para mim. Eu costumava ouvi-lo com a boca aberta. Teve um grande impacto em mim. Inacreditável. Lobanovskiy era muito disciplinado, uma pessoa muito inteligente. Estava interessado em tudo. Baseava tudo em estatísticas. A matemática nunca mente. Ele estava à frente do seu tempo há 40 anos. Trouxe cientistas, criou um modelo e escreveu um programa que lhe dava dados precisos sobre batimentos cardíacos, cargas, e todos os variados testes.”

Por todas as lições, ideias, exemplos, inspirações, por todo o futebol ucraniano que encheu o tanque do orgulho soviético e depois nacional, por todos os golos, geometrias, regras e dados científicos, por todos os bons momentos de futebol e sonhos, pela semente e legado, Valeriy Lobanovskyi está, em cada jogo da Ucrânia, no meio de nós.

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