Não há quem possa garantir, para lá de qualquer dúvida, que tenha havido motivos para que fosse assinalado o pontapé de penálti sobre Raheem Sterling, no Inglaterra-Dinamarca, tal como não há quem possa assegurar, com toda a certeza, que não houve, escreve Duarte Gomes
A nossa identificação com a seleção dinamarquesa tem justificação plausível: o povo gosta de outsiders.
O povo gosta de torcer pelos mais pequenos e menos favoritos, sobretudo quando eles chegam mais longe do que se esperava. Quando chegam mais longe do que se previa.
No caso concreto da Dinamarca, a nossa empatia (não apenas dos portugueses) aumentou exponencialmente depois do episódio "Eriksen". Um episódio de contornos absolutamente dramáticos, mas com final (aparentemente) feliz, que nos aproximou de forma indelével a um conjunto de homens brilhantes. Homens que deram uma demonstração perfeita do que deve ser uma verdadeira equipa dentro e fora do campo.
Foi talvez por força dessa afetividade emocional que constato que "o país" acordou chocado com a decisão de Danny Makkelie em punir, com pontapé de penálti, o contacto entre o joelho de Maehle e a perna direita de Sterling.
Prova disso é tudo o que se disse e escreveu, um pouco por todo o lado:
- "Árbitro holandês leva ingleses ao colo"... "o fator casa foi determinante"... "salto para a piscina"... "simulação clara"... "mais um corrupto ao serviço da UEFA"... "toque ligeiro e quase impercetível"... "o VAR tinha obrigação de reverter a decisão", etc, etc.
Lars Ronbog/Getty
Ponto prévio, só para nos entendermos:
- O contacto existiu (foi evidente), mas não foi claro para mim que tivesse sido suficiente para ser considerada a falta.
Foi, de facto, um lance cinzento, em que parece ter havido algum aproveitamento do avançado.No entanto, a medição de intensidade deste tipo de jogadas é sempre muito difícil de identificar. Há situações em que um contacto maior e mais claro pode não ser falta; há outras em que apenas um pequeno toque pode ser suficiente para desequilibrar e fazer cair um jogador.
Trocando por miúdos, não há quem possa garantir, para lá de qualquer dúvida, que tenha havido motivos para que fosse assinalado o pontapé de penálti, tal como não há quem possa assegurar (com toda a certeza) que não houve.
Dito isto, só mesmo a tal colagem emocional aos nossos amigos dinamarqueses pode justificar o ataque cerrado à decisão do árbitro holandês.
Uma pessoa inteletualmente honesta e distante dessas emoções não pode, em momento algum, assegurar publicamente o que quer que seja. Desculpem, mas não pode. É impossível.
Esta nossa postura não é de agora. Por cá, sempre tivemos os chamados especialistas todo-o-terreno.
Malta que nunca viu uma sessão parlamentar e que acha que sabe mais de governo do que o Governo; malta que nunca pegou num bisturi e que acha que sabe mais de medicina do que o médico; malta que nunca pisou um relvado e que acha que sabe mais de treino e de leis de jogo do que o treinador e o árbitro. Malta que nunca entrou num laboratório e que acha que sabe mais de vírus do que o virologista ou epidemiologista.
É como é.
O direito à opinião é legítimo. Obviamente. Não precisamos de ser doutores em nada para ter e exercer pensamento livre. Mal seria. Mas entre isso e a forma como "vendemos" certezas inabaláveis sobre assuntos em que nos falta experiência prática, saber e know-how técnico vai uma grande distância.
Quando entramos por aí, nesse registo cheio de convicções ocas, ficamos mal na fotografia. Não vale a pena, não é bonito e acima de tudo, não é justo.
É aí, precisamente aí, que passamos a deformar opinião. O exato oposto do que compete a muito boa gente.