Euro 2020

Os italianos não são cínicos, nem só defendem. São é corajosos

Os italianos não são cínicos, nem só defendem. São é corajosos
Michael Regan / POOL

A Itália é a nova campeã da Europa porque jogou um torneio da forma menos italiana de sempre, se dela esperássemos o que os clichés há muito lhe colam ao futebol. Começou praticamente a perder, mas, ao fim de meia hora, a final passou a pertencer aos italianos, que jogaram até ao fim do prolongamento (1-1) como no resto do torneio: a quererem ter muita bola, a terem-na e a tentarem sempre atacar com ela. E a Inglaterra, que escolheu aguentar até aos penáltis, falhou três contra os dois de Itália e estendeu um trauma com 55 anos

Uma final é uma final, equivale ao labor e à conquista de dezenas de almas, podem clichezar à vontade que as finais existem para serem ganhas, mas, quando se fizerem as contas no fim dos dias, será maior a gente a ter perdido finais, quase-finais ou jogos que eram vias de passagem para uma final. Os jogadores a meterem os papéis para a reforma sem alguma vez terem coabitado em equipas finalistas estarão sempre a maioria, é um lógica plural e, se me permitem, vou individualizá-la para ilustrar a trituradora de expetativas que é o futebol.

À ponta da fileira de italianos abraçados em Wembley, a berrarem o hino do país no relvado enquanto são respeitosamente assobiados por uma minoria, está Giorgio Chiellini. Tem os olhos fechados como de costume, um esgar malandro de sorriso, o maleitoso nariz, partido e endireitado várias vezes por uma carreira feita a guerrear. O central inaugura, em março de 2007, este reconstruído estádio de Londres com um Inglaterra-Itália em sub-21 e já então era calvo, capitão e carcomido pelas batalhas (abriu a cabeça e sangrou). É o único jogador que sobra

Os anos acumularam-se e Chiellini perdurou, só ele, para ser uma alma-mestra da Itália acerbada pelo repentismo da final do Europeu, ainda nem todos os bancos de Wembley estariam compostos com atenção e a Inglaterra, tendo bola encostada à linha lateral, projetou os médios para a frente e puxou Harry Kane para trás, antes do meio-campo: o capitão inglês recebeu, rodou e arrancou para acelerar um passe a cruzar o campo; Trippier recebeu-o à direita, esperou pelo sprint de Walker nas costas e fez duvidar Chiellini, o derradeiro dos passivos a lidar com a jogada. Saiu cruzamento de ala para ala e Luke Shaw, com potência sem esforço, rematou para de primeira a bola que lhe pingou à frente.

Era o segundo minuto da final e Gareth Southgate, o selecionador inglês, mal reage. Poucos mais minutos viriam até à chuvada apareceu, as nuvens cediam ao inglezamento do panorama. Durante muitos mais minutos, os italianos são arrombados por uma pressa a executar um plano, porque de um plano quando várias coisas, tão repetidamente, se arremessam contra quem se organiza à frente de uma baliza.

Tendo a bola e partindo com três centrais, os ingleses ora encostam os dois médios, Kalvin Phillips e Declan Rice numa aparente inutilidade de linhas passe, ou os esticam para as laterais ou perto dos extremos e assim forçam um engodo que, durante quase meia hora, os italianos perseguem com mais instinto do que pensamento. É um tempo hegemónico, o jogo é da Inglaterra e dos ingleses gritantes a cada bola roubada perto da área de Chiellini, a cada segunda bola reclamada (são quase todas), a cada vez que Harry Kane é o aproveitador de um isco criado.

O capitão baixa metros atrás de metros a sua posição, aparece nos buracos deixados vagos pelas perseguições dos médios de Itália e, quase uma dezena de vezes, é o avançando a jogar menos como avançado que há - nos 10 minutos iniciais, faz duas jogadas iguais às do golo. E os ingleses lá vão, intensos e mordiscadores imediatos de calcanhares a cada receção dos adversários, que apenas se começam a adaptar, aos poucos, a partir dos 20’.

Com Jorginho a ditar alguma ordem bola, ganhando-lhe tempo e companhia, e a esbracejar para corrigir os italianos que o rodeiam, a equipa melhora nos 60 metros para diante da sua baliza. Ter o quiçá melhor futebolista do torneio, e o mais provável melhor médio (com o central Bonucci a distribuir passes rigorosos quando ele não era capaz), acaba por equilibrar a Itália, que mesmo hesitante na pressão à saída inglesa a três, de trás, melhor no critério com bola para procurar os rasgos velocistas de Enrique Chiesa.

Enfraquecida sem Spinazzola, lesionado nos quartos-de-final, o extremo é o único garante de aceleração com bola, Insigne desequilibra serpenteando e ludibriando, não correndo e intensificando o ritmo como Chiesa faz para se livrar de Rice e, à entrada da área, bater de pé esquerdo o único remate perigoso (35’) dos seis tentados pela Itália. Quase todos mais forçados do que engenhados, mais a insistirem contra uma barreira organizada do que capazes de a desmontar.

Os ingleses vão descansar com vantagem, o singelo remate feito é-lhes valioso e, quando volta para a segunda parte, recolhem ao modo-Inglaterra deste Europeu: uma seleção passadora e manipuladora de bola, mas arriscadora com parcimónia, não acelerando muito, não inventando muito, não tentando grandes revelias além de fazer as posses sobreviverem até às receções com cola de Kane ou às fintas insistentes de Sterling. É ele quem logo (48’) se tenta espremer entre os centrais e quase alcança a tentativa na cara de Donnarumma.

Descrito de forma simplificadora, os ingleses acomodaram-se a defender. Foram deixando de pressionar os italianos nos centrais e chegando atrasados ao encaixe de Rice e Phillips em Verratti e Jorginho que, com o tempo, tiveram bola com os espaços que os fazem ser bullies num jogo de futebol.

Com o balão da pressão dos caseiros a desinsuflar, Roberto Mancini abdicou de ter Immobile a tentar existir com coisas que não tem (com poucos toques, segurar a bola de costas e esperar por apoios), preferiu jogar com Berardi a ser um de três atacantes irrequietos e a Itália pegou na final pelos colarinhos. Immobille tentou sem ameaçar muito (58’), depois Chiesa forçou nesgas da esquerda para dentro e rematou rasteiro (62’) para Pickford ir à relva pará-lo mais a custo do que a bola que Verratti, esticado com a sua pequenez num canto, cabeceou e o guarda-redes desviou contra o poste (67’).

A bola entraria à força, noutro canto no mesmo minuto apareceria Bonucci, na pequena área, a forçá-la baliza dentro e a dar ainda mais fortaleza ao crescimento da seleção italiana em Wembley, para a frente seriam 20 e poucos minutos de um conjunto de tipos a chegarem-se à frente na coragem que, vendo bem, não será propriamente assim tão corajosa - limitaram-se, sim, a jogarem à sua maneira.

Que também tem a ver com fidelidade, é preciso todos crerem que a forma que se escolhe é a melhor de todas as maneiras que há de chegar à baliza e os italianos, mesmo que só com um passe longo de Bonucci a quase encontrar Berardi à beira de Pickford (73’), foram sempre sendo melhores em tudo. Plantaram-se no meio-campo inglês, os centrais a serem médios para formarem superioridades numéricos nos lugares onde se trocava a bola, puseram muitos dos seus a partirem em corridas de rutura para mexerem com a linha defensiva de Inglaterra, que desde o seu golo se limitou a aguentar, só a resistir. Também isso tem a ver com crenças.

A final virou o oitavo jogo deste Europeu a prolongar-se, talvez um sinal das saudades dos astros dos adeptos nos estádios, quiseram-lhes dar mais bola para verem mesmo que os ingleses que atolaram Wembley até com gente sem bilhetes - a segurança do estádio foi quebrada antes do jogo e muitos conseguiram entrar - tenham continuado a ver a sua seleção murcha e comedida, mais a existir do que a fazer por viver para cima do jogo.

Mesmo que, na ressaca de um canto, a sobra tenha ido ao peito e ao pé de Philipps para depois passar perto de um dos postes da propriedade de Donnarumma, a primeira fatia do prolongamento manteve a final no leme dos italianos manejadores da bola, que por um triz não tiveram Bernardeschi a desviar um cruzamento de Emerson no anoitecer de uma jogada de um lado ao outro do campo.

E, na segunda, houve quase 10 minutos de supremacia inglesa com Jack Grealish já em campo, a gerar dúvidas que nunca tinham houve nos equipados de azul que todo o preconceito futebolístico diz saberem, antes de tudo, defender e defender. Nesse interlúdio de aperto, a Itália teve a irmandade defensiva de Leonardo Bonucci e Giorgio Chiellini, dois versículos ambulantes de como não deixar que outra equipa chegue ao momento de rematar se tudo o resto der para o torto.

O careca do nariz amassado levaria o seu sorriso para o jogo da moeda com Harry Kane, como é possível um homem estar tão descontraído, tão solto como se nada fosse da ocasião, a palmar-se no peito para dizer que são eles, os italianos, quem empurrariam a roda-viva dos penáltis que não é uma roleta, nada disso; pode ser um outro jogo que se inicia, é-o de certa forma, um requerente de trabalho, de horas de preparação, de armaduras mentais.

A demora de Belotti na abordagem falhou-o e badalado como infalível nisto da vida a 11 metros da baliza, Jorginho, também não celebrou quando correu, saltou e rematou para o desempate pender para a Itália. A ambos Pickford se opôs, mas para cada um também houve um falhanço contrário - Rashford, o mais demorado a bater a bola, passou-a ao poste e Sancho esbarrou em Donnarumma. Ambos roçaram o desprezo dos minutos ao longo do Europeu, mas entraram com o prolongamento a fechar a persiana só para estarem ali, onde heróis se esculpem ou traumas se pregam.

No derradeiro dos pontapés, a responsabilidade depositou-se em outro miúdo como eles e Saka foi menor que a envergadura do guarda-redes italiano, impassível a esperar pelos extasiados italianos que acorreram a celebrar a conquista com ele.

E, depois de o troféu ser erguido por Giancito Fachetti, em 1968, seguiram-se os braços do italiano da bagagem cheia de batalhas a elevá-lo. Giorgio Chiellini levantou o derradeiro símbolo de uma Itália cuja vitória será duradoura. Como durará o pesadelo inglês com penáltis: foi a sétima vez que perderam em nove desempates de penáltis desde 1966, quando se condenaram a julgarem-se obrigados a conquistarem qualquer prova.

Acabaram a ver a Itália menos italiana de sempre e mais combatente dos preconceitos que lhe colaram a chegar ao fim e a ganhar. A derrubar as muletas do cinismo, da matreirice, do catenaccio que serve de chapéu para tudo. Não.

Os italianos jogaram para serem protagonistas em tudo e atacarem com tudo, também jogaram para ganharem e, pela forma como o fizeram - e não porque o fizeram -, serão lembrados durante muito tempo.

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