Boa parte da equipa sul-coreana feminina de curling tem origem em Uiseong, uma região agrícola remota do país. São conhecidas como as “Garlic Girls”, em homenagem à produção agrícola feita na região, na sua maioria de alho. Em 2018 foram a Pyeongchang, na Coreia do Sul, então cidade anfitriã dos Jogos Olímpicos de inverno, protagonizar uma das histórias que mais marcou a competição no país: venceram a primeira medalha de ouro de sempre na modalidade para aquela nação.
Desse momento cresceu uma história de heroísmo e glória nacional. Mas quando tudo parecia estar bem, as jogadoras convocaram uma conferência de imprensa e levantaram o pano sobre daquela que era, na verdade, a realidade.
A equipa acusou dois dos seus treinadores e o pai de um dos treinadores, que era também o vice-presidente da Federação Coreana de Curling, de abusos verbais e psicológicos. Do outro lado das luzes da ribalta para onde foram catapultadas, as jogadoras eram repreendidas por interagirem com outros atletas, proibidas de utilizar qualquer rede social e chegaram mesmo a estar impedidas de receber o prémio monetário que conquistaram nos Jogos.
Kim Eun-jung chegou a estar teoricamente fora da equipa, depois dos treinadores a colocarem de lado quando tomaram conhecimento dos planos da jogadora de constituir família.
Trazer a público esta situação foi o segundo ato de heroísmo das “Garlic Girls”, que ao realizarem a conferência de imprensa iniciaram um debate no país há muito desejado. As discussões sobre a exploração de atletas na Coreia do Sul voltaram a estar na ordem do dia, além das dificuldades em particular para o desporto feminino, num país onde as modalidades funcionam de forma hierárquica, com os homens muitas vezes no topo e as atletas a serem aconselhadas a não questionar as ordens.
Na altura, várias atletas de patinagem, judo, taekwondo e wrestling seguiram a equipa de curling e vieram a público denunciar os abusos sexuais que sofreram por parte dos seus treinadores.
“Na Coreia, os programas de formação são muito mais intensos do que nos Estados Unidos. Há menos margem de manobra, muito menos flexibilidade e, francamente, é bastante comum os treinadores gritarem com os skaters“, revelou Oh Ji-hoon, antigo patinador de velocidade, ao “New York Times”.
A segunda vitória da equipa chegou em 2019, quando, após investigação, o governo deu razão às jogadoras, considerando verdadeiras a maioria das acusações. Os treinadores e o vice-presidente da federação foram banidos da modalidade para sempre.
“Embora não possamos conhecer e mudar toda a corrupção no mundo desportivo, pelo menos neste desporto podemos revelar o que se tem passado na esperança de que não volte a acontecer”, escreveu Kim Kyeong-ae num e-mail enviado ao “New York Times”.
Em Pequim, as “Garlic Girls” serão Annie, Pancake, Steak, ChoCho e Sunny, ou Kim Eun-jung, Kim Yeong-mi, Kim Kyeong-ae, Kim Cho-hi e Kim Seon-yeong, que têm todas o apelido “Kim” e por isso são também conhecidas como “Team Kim”. Para se diferenciarem, cada uma escolheu um apelido em honra da sua comida de pequeno-almoço preferida.
A equipa terá, pela primeira vez, treinadores estrangeiros, mas chega à capital chinesa depois de um período em que treinar e competir não foi tarefa fácil. Ao contrário das equipas de outros países onde o curling é uma modalidade popular, as “Garlic Girls” são muitas vezes obrigadas a viajar para o estrangeiro para participarem em competições. Com a pandemia causada pela covid-19, isso significou um longo período a lidar com quarentenas ou simplesmente a não conseguir viajar.
Mesmo assim querem para repetir o feito de 2018, quando não tinham o favoritismo mas vencerem o Canadá e a Suíça, dois países fortes na modalidade. Até porque poucas coisas que tenham que enfrentar agora serão mais difíceis do que tiveram de passar para chegar até aqui.