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“Sei o trabalho que dá tirar o melhor de nós próprios”. A n.º 1 do ténis Ash Barty não tem vontade de fazê-lo mais e retira-se aos 25 anos

“Sei o trabalho que dá tirar o melhor de nós próprios”. A n.º 1 do ténis Ash Barty não tem vontade de fazê-lo mais e retira-se aos 25 anos
Getty Images

Dois meses depois de vencer o Open da Austrália, a líder do ranking mundial feminino acordou-nos com um inesperado e estrondoso adeus ao ténis. Barty diz que lhe falta a predisposição a nível "físico e mental" para continuar a dar o melhor de si à modalidade e sai de cena no topo e com a aparente leveza na alma de quem tem a certeza que há outros sonhos para cumprir

O grito sai-lhe das profundezas do seu corpo, estava ali a efervescer há duas semanas, desde o primeiro encontro no Open da Austrália de 2022. Daí até ao último ponto da final, Ashleigh Barty não perdeu um set sequer no seu torneio do Grand Slam. É a número 1 mundial, está diante do seu público, com quem partilha o passaporte e o muito próprio jeito de ser australiano. Desde 1978 que eles esperavam uma vitória de uma atleta do país em Melbourne e Barty fê-lo aqui há umas semanas.

E esta poderosa imagem, de um grito não contido num dos maiores palcos mundiais do ténis, poderá muito bem ser a última imagem que vamos ter de Ashleigh Barty como tenista profissional.

O anúncio chegou tão inesperado quanto leve, determinado e sem artifícios, num vídeo filmado em tons pastel com Casey Dellacqua, grande amiga com quem chegou a quatro finais de pares em torneios do Grand Slam, como interlocutora. Com a emoção na voz, mas uma aparente segurança de quem sabe que será tão ou mais feliz a partir daqui, Ashleigh Barty diz que já chega. Aos 25 anos e com o estatuto de melhor jogadora do mundo timbrado nos rankings, a australiana vai retirar-se, porque não está disposta a colocar-se de novo ao serviço das exigências que uma carreira como profissional lhe exige.

“Sei o trabalho que dá tirar o melhor de nós próprios”, explicou a tenista, vencedora de três torneios do Grand Slam. “E deixei de ter isso em mim. Não tenho a predisposição a nível físico e mental e tudo o que é preciso para me desafiar ao mais alto nível outra vez. Sei que estou esgotada”, continuou.

Esta não é a primeira vez que Barty fecha a porta ao ténis. Em 2014, com 17 anos, destacava-se então principalmente no circuito de pares, quando uma depressão a fez dar um passo ao lado. Dedicou-se ao críquete - chegou mesmo a jogar na liga profissional australiana - e trabalhou o lado mental com um psicólogo. Durou 17 meses esse hiato. Em 2016 pegou de novo na raquete e logo no ano seguinte chegou à terceira ronda no Open da Austrália. O primeiro título num dos majors aconteceria em 2019, na terra batida de Roland Garros, ano em que se estreou também no topo do ranking feminino, lugar que foi seu num total de 119 semanas desde aí.

A última imagem de Barty num court de ténis, a festejar o título no Open da Austrália deste ano
Clive Brunskill

Em 2020, voltou a fazer uma pausa longa na carreira, optando por permanecer na Austrália mesmo quando o circuito retomou atividade no pós-pandemia. E mesmo competindo intermitentemente depois disso, a versatilidade de pancadas e o à-vontade em todas as superfícies deram-lhe mais dois títulos em torneios do Grand Slam: Wimbledon em 2021 e Open da Austrália já este ano. O triunfo na relva do All England Lawn Tennis Club de Londres foi o concretizar do seu “único verdadeiro sonho no ténis”, confessou a Dellacqua, e mudou a sua perspectiva. A vitória no Open da Austrália, em casa, meses depois, tornou-se “a forma perfeita de celebrar a fantástica viagem” que foi a sua carreira no ténis.

“Estou muito agradecida por tudo o que o ténis me deu - ajudou-me a concretizar todos os meus sonhos e ainda mais - mas eu sei que este é o momento certo para me afastar e perseguir outros sonhos”, apontou ainda. Que sonhos são esses, Barty não revelou, mas na sua cara está estampada a certeza de aos 25 anos ainda ter uma vida inteira pela frente sem escalas intermináveis, as malas às costas, sem as severas quarentenas que todos os australianos têm de passar quando regressam a casa desde que a palavra “covid-19” entrou de rompante nas nossas vidas.

Neste momento, Barty está “satisfeita, realizada”. Agarrou a segunda vida no ténis com a certeza que a sua felicidade não estava “dependente de resultados”. Ainda assim (ou talvez por causa disso) foi no regresso que chegaram os títulos a nível individual e o estatuto de melhor jogadora do planeta. E o respeito das adversárias, que lhe admiram a discrição e personalidade tranquila e despretensiosa, num circuito onde não faltam os egos.

Na Austrália, a vitória no major local só lhe reforçou a popularidade, ela que tem no sangue a história tantas vezes ignorada ou menosprezada das tribos indígenas, no seu caso os Ngarigo. Scott Morrison, primeiro-ministro australiano, deixou-lhe no Twitter um agradecimento por ter “inspirado uma nação”.

“Toda tu és classe e os teus feitos serão celebrados para sempre. Em nome de todos os australianos, tudo de bom para ti”, escreveu ainda o chefe de governo da Austrália.

Como Henin e Sampras

Não é a primeira vez que uma número 1 mundial em atividade se afasta do ténis de forma inesperada. Justine Henin foi a última, também com 25 anos, em 2008. A belga trazia sete títulos do Grand Slam às costas e era uma das dominadoras do circuito, mas sentia-se esgotada depois de 20 anos de dedicação às raquetes. Dois anos depois regressou, a bom nível, mas sem conseguir repetir os êxitos em majors.

Barty pode também tornar-se na primeira tenista desde Pete Sampras a retirar-se após uma vitória num torneio do Grand Slam - no caso do norte-americano, o US Open de 2002. Marion Bartoli também disse adeus ao ténis após vencer Wimbledon em 2013, mas voltaria à competição. Já Flavia Pennetta anunciou em pleno discurso de vitória do US Open de 2015 que deixaria o ténis no final dessa temporada, que ainda completou.

A carreira curta mas proveitosa de Ashleigh Barty valeu-lhe 15 títulos e mais de 23 milhões de dólares (€21 milhões) em prémios monetários. Para a australiana é o suficiente, porque deu "absolutamente tudo o que tinha". A história do ténis não tem necessariamente de ser feita de quantidade - Barty deu-lhe qualidade enquanto teve vontade e disponibilidade para se sacrificar. Aos 25 anos, depois do pó de tijolo de Paris, da relva de Wimbledon e do piso rápido de Melbourne, outros sonhos estão para chegar.

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