O horizonte cheio de neve evidencia que, nos Pirenéus, março ainda é mês de clima severo, com céu cerrado e um certo cinzento a pairar. O cenário tem um certo tom carregado. Uma etapa da Volta à Catalunha a acabar aqui, em Boí Taüll, pode convidar a prudências, calculismos e taticismos, guardando forças perante o ambiente agreste.
Mas há um português de 23 anos que corre sempre sem luvas, como se querendo demonstrar que não esconde nada na manga. O que João Almeida tem para dar está ali, bem visível, em forma de esforço, energia, bravura e talento. A 2.015 metros de altitude, o ciclista da UAE Emirates deu nova demonstração da sua essência audaz, bem própria de uma nova geração de corredores que trepam com o espírito aventureiro e ofensivo que chegou a parecer perdido no ciclismo.
Na quarta etapa da Volta à Catalunha, com 166,7 quilómetros entre La Seu d'Urgell e Boí Taüll, João Almeida foi o melhor, impondo-se a uma concorrência que tinha só nomes como Nairo Quintana (vencedor do Giro e da Vuelta), Richard Carapaz (vencedor do Giro e vigente campeão olímpico), Ben O'Connor (quarto na última edição do Tour) ou Esteban Chaves (já foi pódio no Giro e na Vuelta). A corrida catalã é uma das provas por etapas mais importantes do calendário além das três grandes voltas e o nível dos participantes é a melhor maneira de o constatar.
Com este triunfo, o primeiro do caldense em 2022, o português está em segundo na classificação geral, com o mesmo tempo de Nairo Quintana. À falta de três dias de competição, Almeida avisa que "faltam etapas duras, sobretudo a última" — que termina com um circuito em Barcelona, com diversas passagens no alto de Montjuïc —, mas que "está feliz" e tem os olhos postos "no futuro". Ou como quem diz, na luta pela classificação geral final.
João Almeida partiu para a jornada no nono lugar da geral e o dia nem começou propriamente bem para o português, que se viu envolvido numa queda no início da tirada. No entanto, na dura e longa subida final, o homem da UAE Emirates sentiu-se "muito bem", como confessaria.
Almeida esteve sempre bem posicionado na ascensão até que, a pouco mais de três quilómetros da meta, os favoritos começaram-se a mexer. Carapaz atacou e teve resposta firme do português.
Inicialmente, era legítimo pensar que, com o grupo principal ainda com vários corredores, João Almeida estava a trabalhar para o seu companheiro Juan Ayuso, a jovem promessa espanhola de 19 anos: ainda faltavam três quilómetros de subida, que culminariam acima da barreira dos dois mil metros de altitude, e ali estava Almeida, desgastando-se.
Mas, se a ideia nesta relação entre Almeida e Ayuso — que dá azo a comparações mais ou menos óbvias com a realidade política espanhola — era que o português trabalhasse para o espanhol, a verdade da estrada rapidamente dissipou dúvidas. João cerrou os dentes e, de forma decidida, foi dinamitando o grupo, deixando quase todos os favoritos para trás. Ben O'Connor, o australiano que era o líder da Volta, foi uma das vítimas.
Praticamente sem tirar os pés do acelerador nos quilómetros finais, Almeida foi escalando com a coragem dos grandes campeões. Subindo por entre a neve que ladeava a estrada, só dois colombianos se mantiveram na roda do português.
À entrada para as últimas centenas de metros, poder-se-ia pensar que João adotaria uma postura mais calculista, esperando que Higuita ou Quintana lançassem o sprint. Mas não. Almeida levava um fogo interior que não o permitia esperar. Avançou primeiro, ainda viu Quintana ganhar-lhe uma ligeira vantagem, mas, na reta definitiva, usou a sua conhecida ponta final para se impor sem margem para dúvidas.
Na edição do ano passado chegou a ser líder da corrida e terminou em sétimo. Agora, João parece capaz de mais. Cerrando os dentes, agarrando bem as mãos nuas ao guiador e sem guardar esforços, João Almeida continua a subir, levando por arrasto o ciclismo português, tão pouco habituado a estas glórias pelas montanhas do mundo.