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A presidente da federação da Noruega foi ao Congresso da FIFA exigir justiça para os trabalhadores do Catar. “Eduque-se” foi a resposta

A presidente da federação da Noruega foi ao Congresso da FIFA exigir justiça para os trabalhadores do Catar. “Eduque-se” foi a resposta
Nick Potts - PA Images/Getty

Em Doha, no Catar, e em frente a dezenas e dezenas de homólogos e outros delegados da FIFA, Lisa Klaveness, eleita no início deste mês, não teve pejo em afirmar que “os Mundiais [da Rússia e Catar] foram atribuídos de forma inaceitável e com consequências inaceitáveis”. Logo de seguida foi criticada por homens que lhe disseram que aquele não era “o momento, o lugar ou o palco” para falar de direitos humanos

Lisa Klaveness foi 73 vezes internacional pela Noruega, com participações nos Mundiais femininos de 2003 e 2007. Advogada de profissão, ainda jogou futebol de forma profissional ao mesmo tempo que exercia direito, até deixar os relvados em 2012. Há menos de um mês, tornou-se história: foi a primeira mulher a ser eleita para a presidência da federação de futebol do país nórdico.

E não demorou a causar impacto.

A antiga atacante subiu ao palanque do Congresso da FIFA, que está a decorrer em Doha, no Catar, em vésperas do sorteio do Mundial de 2022 (sexta-feira, a partir das 17h de Lisboa), e disse aquilo que grande parte dos delegados e presidentes de federações nunca tiveram coragem de dizer, colocando pressão na FIFA e na organização do próximo Mundial para que se empenhem em mudanças a nível social, apontando mesmo o dedo ao organismo que regula o futebol a nível internacional por ter atribuído os Mundiais de 2018 e 2022 a Rússia e Catar.

“Em 2010, os Mundiais [de 2018 e 2022] foram atribuídos de forma inaceitável e com consequências inaceitáveis”, sublinhou Klaveness. De recordar que vários membros da Comissão Executiva da FIFA que votaram no processo de atribuição destas competições foram nos anos seguintes condenados, banidos ou suspensos por corrupção. A norueguesa referiu também que “os direitos humanos, democracia e igualdade não estiveram no onze titular” na hora de levar o Mundial de futebol a estes países.

Durante o discurso, Klaveness assumiu que a Noruega chegou a “discutir o boicote ao Mundial do Catar”, sobre o qual recaem todo o tipo de acusações de desrespeito pelos direitos dos trabalhadores envolvidos na construção de novas infra-estruturas, num país em que a homossexualidade é ilegal. A via do diálogo, “através da FIFA”, acabou por ser a opção. “Os membros da nossa federação exigem mudanças, questionam a ética no desporto e insistem na transparência”, frisou em frente a dezenas e dezenas de homólogos e membros da organização do próximo Mundial, pouco habituados ao confronto direto. “A FIFA deve atuar como um modelo a seguir”, disse ainda.

A presidente da federação da Noruega não se coibiu de apontar o dedo à FIFA e, apesar de reconhecer que o organismo não ignorou totalmente as questões de direitos humanos que ensombram o Mundial do Catar, deixou claro que “há ainda um longo caminho a fazer”, exigindo que “os trabalhadores migrantes que ficaram feridos e as famílias daqueles que morreram” nos últimos anos na construção dos estádios - de acordo com o “The Guardian” cerca de 6 mil trabalhadores poderão ter morrido no Catar em infraestruturas relacionadas com o Mundial - "devem ser apoiados".

“Não há lugar para quem não assegura a segurança e liberdade aos trabalhadores (...) nem para líderes que não permitem jogos femininos e que não asseguram legalmente os direitos da comunidade LGBTQI+”, continuou, pedindo também uma política de “zero tolerância com a corrupção”.

“Não é o momento ou o lugar”

O forte discurso de Lisa Klaveness, corajoso no seio de uma organização debaixo de fogo nos últimos anos por consecutivos casos de corrupção na sua cúpula e não poucas vezes conivente com regimes pouco democráticos, terá mexido com o orgulho de certos elementos presentes na sala.

Milhares de trabalhadores migrantes terão morrido na construção de novas infraestruturas no Catar
Matthew Ashton - AMA/Getty

Logo após a dirigente deixar o palco, José Ernesta Mejía, secretário geral da federação das Honduras, pediu a palavra, e numa curta e costumeira declaração respondeu a Klaveness, afirmando que aquele não era “o momento, o lugar ou o palco” para falar de questões de direitos humanos.

“Isto é futebol, temos de nos focar”, disse Mejía, fazendo o papel de advogado da FIFA e Catar que, reforçou, “asseguraram todas as condições para os trabalhadores” que deram forma aos estádios que no inverno vão receber os melhores futebolistas do mundo.

Logo de seguida, Hassan Al Thawadi, um dos secretários gerais do comité organizativo do Catar 2022, fez um parêntesis no seu discurso para mostrar o seu “desapontamento” com a presidente da federação norueguesa. “A presidente visitou o nosso país e não tentou contactar-nos, não pediu uma reunião nem quis dialogar antes de falar hoje [quinta-feira] no congresso”, apontou Al Thawadi, convidando Klaveness e outros membros que ainda possam ter preocupações a "educarem-se antes de fazer qualquer julgamento”.

“Sempre estivemos abertos a diálogo e às críticas construtivas baseadas em diálogo, em compreender as questões e o contexto das questões”, frisou ainda, num discurso em que a palavra “preconceito” e a expressão “dois pesos e duas medidas” foram várias vezes repetidas e dirigidas ao ocidente.

Hassan Al Thawadi assegurou ainda que as condições de segurança nos estaleiros de construção dos estádios do Mundial estão “ao nível da Europa e América do Norte” e que o Mundial servirá de “legado para os próximos anos” no Catar. Mas olhando para a reação às críticas de Lisa Klaveness, esse legado ainda está por construir. E não é só no Catar.

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