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Relatório revela que profissionais de segurança do Catar (vários ligados ao Mundial) são sujeitos “a condições parecidas a trabalho forçado”

Relatório revela que profissionais de segurança do Catar (vários ligados ao Mundial) são sujeitos “a condições parecidas a trabalho forçado”
Matthew Ashton - AMA/Getty

Estudo da Amnistia Internacional volta a apontar desrespeito pelos direitos humanos no país do Médio Oriente. Horários de trabalho de 84 horas semanais, inexistência de dias de folga ou racismo são "abusos sistémicos" no Catar, feitos por empresas contratadas pela FIFA ou pela organização do Mundial

Relatório revela que profissionais de segurança do Catar (vários ligados ao Mundial) são sujeitos “a condições parecidas a trabalho forçado”

Pedro Barata

Jornalista

Continuam as acusações relativamente ao desrespeito pelos direitos humanos no Catar. Um relatório publicado pela Amnistia Internacional indica que no país há profissionais de segurança que trabalham em “condições semelhantes a trabalho forçado”, estando vários deles a exercer funções em projetos ligados ao Mundial 2022, que se realizará de 21 de novembro a 18 de dezembro.

Num relatório intitulado “Eles acham que nós somos máquinas”, a Amnistia Internacional documenta entrevistas a 34 pessoas que trabalham ou trabalharam no sector da segurança privada, em oito empresas diferentes do Catar. Este estudo foi feito entre abril de 2021 e fevereiro de 2022, seguindo-se a uma outra investigação feita entre 2017 e 2018.

De acordo com a organização, as conclusões de ambos os relatórios são coincidentes, sugerindo que “os abusos são sistémicos e não acidentes isolados”. Entre as principais acusações, conta-se o desrespeito pelos períodos de descanso, racismo ou punições face a ausências por doença.

Recorde-se que o Mundial do Catar, cujo processo de atribuição originou diversos casos de suborno e corrupção que evidenciaram práticas criminosas no topo do futebol internacional, tem sido manchado por este tipo de casos. Em fevereiro de 2021, o “The Guardian” informou que 6.500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram desde que foi atribuída ao Catar a organização do torneio.

"A sobrevivência do mais forte"

A lei laboral do Catar estabelece um limite de 60 horas de trabalho semanais e a obrigatoriedade de um dia de descanso pago por semana. Apesar destes direitos estarem muito aquém do que sucede noutros países, 29 dos 34 trabalhadores de segurança entrevistados no relatório indicaram que laboravam, regularmente, 12 horas por dia. Vinte e oito dos profissionais inquiridos alegaram que o dia de repouso lhes era negado, o que significa que tinham jornadas laborais de 84 horas semanais.

Todos os 34 entrevistados eram trabalhadores migrantes. Abdul — os nomes do relatório são fictícios para proteger a identidade das pessoas —, do Bangladesh, foi guarda de segurança no Catar entre 2018 e o meio de 2021 e alega "não ter tido um dia de folga durante três anos". Um outro inquirido descreveu o seu primeiro ano no Catar como "a sobrevivência do mais forte".

Diversas das empresas de segurança onde estas práticas se verificam prestaram serviços ligados ao Mundial 2022: construção de estádios, vigilância de hotéis, de sistemas de transporte ou de infra-estruturas desportivas, bem como ministérios do governo do Catar. Três das empresas, segundo o relatório, garantiram a segurança para torneios da FIFA que já se realizaram no país do Médio Oriente, como o Mundial de Clubes, que se realizou em 2021, ou a Taça Árabe, também em 2021.

Zeke, do Uganda, trabalhou no Mundial de Clubes em fevereiro de 2021. O trabalhador assegurou à Amnistia Internacional que teve de fazer formação para estar na competição, mas que esta, com a duração de oito horas diárias, se seguia ao seu turno laboral.

"Imaginem trabalhar durante 12 horas e, depois, ser conduzido para um centro e ter formação durante oito horas, toda a noite. Depois dormes quatro horas e tens de estar no trabalho às cinco da manhã. Eles acham que nós somos máquinas", diz Zeke, na frase que dá nome ao relatório.

KARIM JAAFAR/Getty

Para gozarem do dia de folga a que tinham direito, muitos trabalhadores tinham, de acordo com a investigação, de pedir "autorização expressa aos empregadores, a qual era, regularmente, recusada". Tirar um dia de descanso sem permissão levava, regularmente, a multas.

Ben, do Uganda, revelou à Amnistia Internacional que trabalhou "durante 18 meses sem um dia de descanso". Um dia, em 2021, o migrante adoeceu e ficou em casa. O trabalhador disse que o seu supervisor alegou "não ter força de trabalho suficiente" para que Ben tirasse baixa por doença, pelo que dois dias de multa foram-lhe retirados ao salário — um pela ausência, e outro por não ter trazido justificação médica.

Outra queixa recorrente refere-se ao racismo. Asher, do Quénia, contou que os trabalhadores "eram pagos por nacionalidade": "Podes encontrar um queniano a ganhar 1.300, mas na mesma função um filipino ganha 1.500 e um tunisino 1.700".

Omar, um outro profissional, acusou os seus chefes de usarem estereótipos racistas para justificarem o seu tratamento: "Eles diziam 'vocês são africanos, podem trabalhar 12 horas por dia porque são fortes'". Em 2019, um relatório das Nações Unidas apontou a existência de problemas de discriminação racial no Catar.

Em 2017, o Catar comprometeu-se a melhorar a proteção laboral no país, com reformas como a introdução do salário mínimo ou melhor acesso à justiça. Ao longo dos últimos anos, Gianni Infantino, presidente da FIFA, tem repetido que o Mundial "ajudou a melhorar" os direitos humanos no Catar, tocando várias vezes na questão do "legado positivo e duradouro" que o torneio deixará. No entanto, a Amnistia Internacional sublinha que "as reformas não têm sido efetivamente colocadas em prática"

"Os abusos que destapamos devem-se ao enorme desequilíbrio de poder que ainda existe entre empregadores e trabalhadores migrantes. Muitos dos profissionais com quem falámos sabiam que os seus chefes estavam a violar a lei, mas sentiam-se impotentes. Emocional e fisicamente exaustos, os trabalhadores continuavam a apresentar-se ao trabalho devido à ameaça de sanções financeiras ou mesmo despedimento e deportação", frisa Stephen Cockburn, chefe de justiça económica e social da Amnistia Internacional.

A FIFA e o o comité supremo do legado, o parceiro da entidade máxima do futebol para a organização do Mundial no Catar, não renovaram o contrato de duas das três empresas que forneciam serviços para as infra-estruturas do Mundial e denunciaram-nas ao Ministério do Trabalho quando encontraram provas de alguns dos abusos documentados. No entanto, o relatório indica que as entidades "deveriam ter-se apercebido dos abusos muito antes" e "não fizeram análise prévia antes de contratarem as empresas".

O estudo remata dizendo que a FIFA e a organização do Mundial do Catar "beneficiaram dos serviços destas companhias enquanto abusos eram praticados", tendo a "responsabilidade" de "promover ou ajudar a promover" indemnizações para os trabalhadores que estavam em infra-estruturas do Mundial sob o regime de trabalho forçado.

Em resposta ao relatório da Amnistia Internacional, o Ministério do Trabalho do Catar reconheceu que "casos individuais de más práticas precisam de ser resolvidos imediatamente", mas vincou que "a existência de empresas que quebram as regras tem e continuará a diminuir". A FIFA não respondeu às alegações do relatório.

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