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Carlo Ancelotti, o treinador que tem charme, humor, uma certa displicência e sabe que a genialidade nem sempre está disponível

Carlo Ancelotti, o treinador que tem charme, humor, uma certa displicência e sabe que a genialidade nem sempre está disponível

Philipp Lahm

Diretor do Euro 2024

Philipp Lahm, antigo campeão mundial e internacional alemão, escreve sobre o treinador italiano que já ganhou títulos nas cinco principais ligas europeias e, esta semana, chegou, com o Real Madrid, à oitava meia-final da carreira na Liga dos Campeões, igualando um recorde de Pep Guardiola e José Mourinho

Em 2016, o Bayern de Munique enfrentou uma tarefa muito difícil. Teve que encontrar um sucessor para Pep Guardiola. Apenas um nome veio à mente: Carlo Ancelotti.

Para nós jogadores, isto significava, por um lado, uma mudança. O que Ancelotti falava numa semana, Guardiola falava em três horas. Por outro lado, o que acontecia com o seu predecessor, também era verdade para Ancelotti: como jogador, ficas confortável porque sentes que o treinador constrói todo um repertório que torna o trabalho disponível para a equipa. É por isso que ele é bem-sucedido em toda a parte.

Numa votação sobre quem é o melhor treinador do mundo, muito poucos diriam Carlo Ancelotti, mesmo em Itália. No entanto, ele tem um recorde único. É o único que, em breve, será campeão nas cinco grandes ligas europeias: com o AC Milan na Serie A, com o Chelsea na Premier League, com o PSG na Ligue 1, com o Bayern na Bundesliga e, com o Real Madrid, ele está prestes a ganhar o título na La Liga.

Também não há outro treinador que tenha ganhado a Liga dos Campeões mais vezes, ou por mais clubes, dois. Ancelotti é também um dos únicos sete homens a ter levantado esta taça tanto como jogador, como enquanto treinador.

Como jogador, triunfou porque possuía habilidades estratégicas extraordinárias. Ancelotti fez parte da lendária equipa do AC Milan sob o comando de Arrigo Sacchi, que ensinou o futebol concetual a grandes jogadores individuais. Assim, Ancelotti jogava em campo, quando ocorreu uma revolução, quando o sistema operacional do jogo moderno contra a bola estava a ser programado: a marcação por zona orientada para a bola, cujo código ainda é atual.

Esta experiência é o pré-requisito para um treinador de topo. A qualquer treinador que não tenha jogado ao mais alto nível falta algo que Ancelotti experienciou. Por isso, o seu profundo conhecimento do jogo, dos jogadores, do meio do futebol profissional, vem de dentro.

Ele não é um treinador dogmático. Todas as suas equipas têm um nível tático. Ele pensa na defensiva. Mas, como jogador, tens a tua liberdade. Ancelotti é melhor na gestão de personalidades difíceis.

Ancelotti também se dava com homens poderosos como Silvio Berlusconi, Roman Abramovich, Florentino Pérez ou Nasser Al-Khelaïfi. Depois de algumas semanas em Munique, chegou ao pé de mim e perguntou-me quem tinha mais a dizer, Uli Hoeneß ou Karl-Heinz Rummenigge. Era importante para ele saber quem, aqui, aprovava ou reprovava as coisas.

Na época em que nos treinou, estava instalado algum caos e o balneário às vezes parecia caótico. Basicamente, coisas de miúdos. Era suposto Ancelotti dar alguma disciplina. Foi-lhe dada uma lista de cinco pontos aos quais os jogadores deveriam prestar atenção no futuro. Depois do treino, chamou-me à parte, mostrou-me a lista e disse: “Agora, estou a ser pressionado”.

Em seguida, Ancelotti parou à frente da equipa, no balneário, olhou para um pedaço de papel e disse: “O conselho de administração deu-me ordens para vos ler esta lista”. O que ele disse, o tom que usou, o seu olhar, dizia: isto não faz parte do meu trabalho, ao fim e ao cabo não estou a treinar uma equipa de juvenis, mas se os chefes querem que eu faça isto, vou fazê-lo. Alguns jogadores contrapuseram que assinar milhares de cartões de autógrafos por mês era demasiado para eles. Ancelotti disse: “Seria o mesmo para mim”.

Ancelotti é independente. Tem charme, humor e uma certa displicência. Consegue manter uma distância. Muitas vezes, depois do apito final, sentava-se num restaurante com a sua família durante uma hora e meia e comia tortellini. É possível encontrar um bom italiano (restaurante) em qualquer cidade.

Nascido numa família de agricultores em Reggiolo, no norte de Itália, Ancelotti costumava ajudar na quinta enquanto jovem. Ele personifica o que é possível no futebol. É possível vir de baixo, subir até ao topo e brilhar num grande palco. No entanto, nunca se leva mais a sério do que é suposto.

Aqueles que agora perguntam como é possível ser-se bem-sucedido em cinco países e em cinco línguas diferentes, precisam de saber que os futebolistas fazem muitas coisas não verbalmente. E Ancelotti dominou as cinquenta palavras importantes neste jogo, as necessárias em todas as línguas. O futebol de primeira classe é internacional. Real, PSG, Chelsea, Bayern e Milan diferem em estilo apenas em subtilezas. Ancelotti é a solução ideal para calmamente treinar tais equipas.

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