Luka estatela-se no chão, empurrado pelo abraço de Rodrygo. Abre depois os braços e as pernas com a soltura de quem julga ter neve em vez de relva a amparar-lhe o corpo, tivesse o Santiago Bernabéu flocos gelados o esqueleto do croata teria ficado esculpido, mas na relva não. É o verde espigado e aparado que nem um tapete a suster Modric ao fim de 123 minutos de uma maneira certamente injusta. Fosse neve e a presença dele ficaria lá cravada, mesmo que efémera. No sítio onde ele cai, de rastos, e fecha os olhos com o desabar do cansaço, esperneando de alegria ao mesmo tempo, não ficaram pistas da sua grandeza.
Justo é reforçar a injustiça que rola no futebol por se jogar em relva, uma carpete natural onde a passagem humana é vincada se lá forçar coisas menos apologéticas, mais de feiura — entradas a pés juntos com pitões de alumínio a ceifarem-na, alguém a raspar-se nela por se atirar a uma bola em esforço, o repetido cravar em força de uma chuteira para a outra mandar um chutão lá para a frente. Aí, é desbravada a terra de onde brota a impecável relva para se notar que andaram pessoas a jogar à bola em Madrid, sem vislumbres de por lá ter deslizado um loiro croata.
Modric está a meses dos 37 anos e, na terça-feira, por lá andou no estádio do sôfrego Real Madrid, que preencheu a maior parte das duas horas da segunda mão de uma eliminatória com o Chelsea a subsistir, mais do que a jogar. A aguentar como podia enquanto pôde fazer incrivelmente tão pouco, pálida imagem de uma equipa fantasmagórica da sua própria versão de uma semana antes, em Londres, onde um compincha do croata em proezas passadas deixou um hat-trick para até o croata enganar. Pior, para dele extrair uma exibição que lhe puxou do cabedal e da genialidade em doses iguais.
Quando Modric se refastelou no relvado ao último apito, aliviado pela derrota por 2-3 lhes chegar para um 5-4 final, e tirou a fina e à antiga bandelete da cabeça, a mesma de sempre que parece lá estar só porque sim, não lhe deveria restar mais uma pinga de si próprio para dar: o croata fartou-se de correr no meio-campo, sem bola ia acudir à esquerda depois de compensar alguém à direita, com ela, tentava ter a genica que não há em Toni Kroos, comedido pelo ritmo a que joga todos os jogos e já não controla tantos quanto antes, nem em Casemiro, o trinco a quem a bola diz outras coisas mais terráqueas e operárias.
E no mais velho do trio de meio-campistas das três Champions seguidas que mora a arte motorizada e voltou a demonstrá-lo, agora numa versão muito gregária, tão falsa e anormal quanto impressionante foi vê-lo a ser a alma de uma equipa combalida, que arranjou forma de reagir sem nunca saber agir. Com a idade que tem, Luka Modric jogou como se tivesse uma multidão de futebolistas dentro, pelo menos uma fusão do alemão — substituído com a sua azia por Camavinga, um calmo adolescente que aparenta ser um trintão na forma como joga — e do brasileiro, que sairia para entrar outro miúdo mais atacante, o extremo Rodrygo. Dois minutos após o croata ficar sem a companhia dos estarolas de uma era dourada do Real Madrid, seria esse novato a receber o maior pedaço de arte que a ser pintado ficaria exposto, sem vergonhas, no Museu do Prado.
A anatomia não dá qualquer sentido ao contorcionismo a que Modric se prestou, curvando-se sobre a perna direita para a tornear a jeito de pontapear uma bola que está à frente do seu pé esquerdo, por ser tão anti-natura se entende a razão de poucos jogadores se proporem a lançar uma bola de futebol, à distância, com a parte de fora do pé contrário ao lado onde ela está. A trivela de Luka não foi um mero passe, uma simples carta enviada rasteiramente. Foi um correio de 30 metros lançado pelo ar até à área, absurdamente preciso.
O grau de inesperado em truques feitos durante no futebol importa e não é que as trivelas, em Modric, sejam raras, mas todo o seu contrário. Não deve haver jogo em que a bola não sinta a parte de fora do seu pé direito, muita rabugem deve ele ter ouvido em miúdo vinda de treinadores da formação que insistem para miúdos se receberem e passarem a bola só com o interior dos pés, teimando em desertificar o litoral de possibilidades que há nas outras partes. Ainda bem que o croata ignorou a tendência.
Dos 89 toques que deixou no Real Madrid-Chelsea, esse foi o sublime, a beleza de todas as poucas coisas que os espanhóis deram na partida em que foram massacrados pelo passar do tempo, relembrados de como a glória é finita e o tempo engole toda a gente com desprimor pelo que já terão feito. No Bernabéu, o Real foi suplantado pela pressão concertada e subida dos ingleses, por vezes atropelado pelo seu domínio, mas, como um animal cujo instinto reage ao ver-se encurralado, desencantou uns pózinhos de grandeza pouco depois de o Chelsea quase fazer o 0-4 — foi aquele passe de trivela, do nada, a resgatar um clube embebecido no seu passado recente conquistador, ainda alérgico a rejuvenescer as pernas de quem compõe a equipa.
O que se entende, mesmo se desaconselhável, porque Luka Modric é um contrariador-mor da idade, ainda tão enérgico e dar passes e correr para ir buscar a bola, logo de seguida; a nunca estar quieto para a equipa não emperrar no conforto do talento, do estatuto e do passado, que podem estagnar o presente; a puxar pela equipa com o que joga e faz jogar, enquanto papa quilómetros ligado à corrente. A reação aziada de Toni Kroos, ao ser preterido numa altura de suplício em que o Real Madrid precisava de ir desencantar milagreiros, também explica o que ainda é o pequeno croata.
Um grandíssimo jogador de futebol, em quem o durante demasiado tempo inativo Carlo Ancelotti, a partir do banco, depositou as esperanças de o Real ser capaz de ressuscitar façanhas de noites de Champions antigas. E aquela trivela genial foi um ato de reminiscência, ou talvez uma prova de que o talento estimável de um só jogador salva um jogo quando a equipa é superada por uma equipa melhor. Modric foi ambas em conjunto com Karim Benzema, o avançado dos toques finos e simples, que também viveu os tempos áureos dos merengues este século quando ainda jogava para beneficiar um certo jogador em vez de hoje jogar para ele e para o resto da equipa.
Quando Luka Modric repousou sobre a relva, esgotado, no croata residia o descanso dos génios, dos que algum dia acabam por findar, porque a relva não guarda memórias e os humanos perecem com o tempo. Mas nele existe a grandeza dos futebolistas que não têm teto e elevam as equipas até quando elas não se encontram, quando só conseguem resistir em vez de jogar. E depois há momentos como os que existem na parte de fora do pé direito do croata, onde o futebol vive e só alguns têm a fortuna de lhe dar guarida.