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As mil expressões de Pep Guardiola e o peso de uma camisola

As mil expressões de Pep Guardiola e o peso de uma camisola
Alex Livesey - Danehouse/Getty

O Manchester City vai em vantagem ao Santiago Bernabéu nas meias-finais da Champions, após vitória por 4-3, mas a história do jogo será, na verdade, como o Real Madrid se mantém nesta eliminatória: mesmo com os ingleses quase em estado de graça, a Liga dos Campeões é território merengue, o seu habitat. Qualquer erro é fatal e o Real, neste cenário, nunca está verdadeiramente morto. Um dos jogos do ano

É possível que haja algo de inato para os que nascem na aristocracia. Existem regras, o estatuto, a tradição, tudo isso perfeitamente cerzido para que no momento certo, no sítio suposto, ganhe a pose, o peso, o saber estar. Parece impressionante estar aqui a começar um texto falando de uma equipa que acabou de perder um jogo, mas a Champions é o palácio real do Real Madrid, o seu habitat natural, o local onde a equipa de Madrid caminha ondulante sem colocar pé em ramo verde: conhece o terreno, nasceu para ele, adaptou-se a ele, é nele que melhor se camufla.

Só assim talvez se explique que esta meia-final entre Manchester City e os merengues esteja ainda em aberto ao fim de 90 minutos. Não fosse aquela camisola (hoje não branca mais sim azul escura) pesar tanto e talvez estivéssemos a falar aqui de uma goleada: o City marcou quatro golos, podia ter marcado mais uma mão-cheia deles, mas sofreu três porque do outro lado aquele escudo também joga, naquela espécie de gravitas quase soberba de quem pode apontar para o museu e contar mais além que qualquer outro clube.

E Pep Guardiola, por outro lado, sabe que tem nas mãos uma equipa que é quase uma antítese disto: não haverá dúvidas que, ao lado do Liverpool, o City é hoje a melhor sinfonia de futebol que anda por aí, mas isso não lhe tem valido de muito. A final perdida da Champions no ano passado dir-lhe-á isso mesmo, o azul claro da equipa de Manchester não tem o poder de ofuscar uma competição, de ser o seu sinónimo, de ser até maior que ela. O peso, o tal peso de uma camisola.

Foi por isso talvez que vimos em Guardiola esta terça-feira no Etihad todas as expressões do mundo, da alegria à maior das preocupações e desespero. O Real Madrid, mesmo não sendo por estes dias a equipa de há cinco, dez anos, é uma serpente a quem apenas a cabeça cortada num golpe pode impedir de continuar a bichanar campo fora. O City quis fazê-lo, claro que quis, marcou dois golos aos 2’ e aos 11’, o primeiro por Kevin de Bruyne, a aparecer vagabundo a entrar área fora para receber um cruzamento colocado para o espaço por Mahrez, o segundo por Gabriel Jesus, agora com De Bruyne a cruzar para uma área onde havia mais azul celeste que o escuro do Real.

Chris Brunskill/Fantasista

Nunca o Real Madrid tinha sofrido dois golos tão cedo na Champions, mas sabem como era a cara de Guardiola? De apreensão. Apreensão porque a sua equipa dominava, saía com facilidade, colocava-se com a maior das naturalidades em situações de vantagem numérica em ataques rápidos, para pânico generalizado na linha defensiva do Real Madrid, mas brincava com o fogo.

Aos 26’, primeira explosão de irritação guardioliana, depois de Mahrez, numa jogada rápida com igual número de peças entre atacantes e atacados, achar por bem procurar a glória pessoal quando tinha Foden à espera do passe para um golo fácil. Três minutos depois, uma abertura brilhante de De Bruyne apanhou Foden em situação clara de perigo, com o jovem inglês a rematar ligeiramente ao lado. Mesmo a ganhar por 2-0, Guardiola era agora um homem de cara lívida, de mãos na cabeça.

Porque já se estava mesmo a adivinhar. Alaba deu o primeiro sinal à meia-hora de jogo que a serpente não estava esmagada, com uma cabeçada que saiu milimetricamente ao lado, para três minutos depois Benzema (sempre Benzema) antecipar-se a Zinchenko para dar o melhor seguimento a um cruzamento de Mendy.

O jogo era um novo jogo.

Na 2.ª parte, já com Fernandinho a substituir John Stones na lateral direita, lugar deixado órfão pelo indisponível Cancelo, o City entrou de novo forte: logo aos 47’, Eder Militão errou feio, com Mahrez a cavalgar e a rematar ao poste. No ressalto, Foden atirou contra Carvajal. Não seria ali, mas seria aos 53’, numa recuperação de Fernandinho a meio-campo, na cara de Vinicius. O veterano brasileiro ganhou o lance ao miúdo brasileiro, combinou com um colega, seguiu para a linha e cruzou perfeito para a cabeça de Foden - e pela vez, em Guardiola viu-se um sorriso, uma alegria despreocupada.

Cedo demais.

Sebastian Frej/MB Media

Porque quem dá também pode tirar e logo a seguir foi Vinicius a enganar Fernandinho, com uma simulação que deveria dar direito a castigo, que deixou o jogador do City pregado e a equipa fora de pé. Vinicius seguiu por ali fora e na área bateu Ederson com um remate cruzado - 3-2 no marcador. No banco, mal o jovem deu a volta ao mais velho, já Guardiola se ajoelhava, como que prevendo o desfecho.

O jogo seguiu sendo mais do tricotar coletivo do City do que da esperteza sorrateira do Real Madrid e aos 74’ Bernardo Silva voltou a colocar a diferença em dois golos, num remate fortíssimo no ângulo superior do lado direito de Courtois, sem reação perante tamanho disparo, um disparo de raiva de quem sabe que com o Real, em jogos a eliminar, convém manter uma distância de segurança interessante. Era o fim, parecia, Guardiola festejava novamente, virado para os adeptos que assistiam a um dos jogos do ano, uma pérola preciosa de futebol de parte a parte.

Cedo demais, novamente.

Porque este Real Madrid, quando o assunto é Champions, sente o cheiro de sangue ao longe, corre até ele e devora a presa. Qualquer erro é uma oportunidade para caçar. E errou Laporte aos 82’, uma mão marota que ficou para trás e tocou numa bola que nem parecia particularmente danosa para o City. Grande penalidade e Benzema, com a descontração ou arrogância de quem sabe a camisola que veste, assinou uma panenkada sem arestas ou espinhos, para dar ao jogo o seu sétimo golo: quatro para o City, três para os espanhóis.

Não há estocadas finais com o Real Madrid na Champions, daqui a uma semana, no Santiago Bernabéu, partirá um golo atrás, mas o que é isso para quem tem treze Champions. É muito o peso e o City sentiu-o mesmo fazendo um jogo quase exemplar. Que grande noite de futebol em Manchester.

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