Há mais camadas dentro de um panenka do que a mera valentia. A ciência oculta é divina. A corrida dissimulada, o retardar do gesto para não levantar suspeitas, o ângulo com que se coloca a bota nos tenros ossos da bola, a intensidade nostálgica com que se bate, às vezes minutos depois da última ação com aquela ferramenta redonda, ameaçando uma certa falta de sensibilidade. À quase ficção científica e transparente técnica junta-se a mentalidade, a explicação. Para quê?
Seis dias antes, Karim Benzema falhara dois penáltis no estádio do Osasuna. Na terça-feira, com um 2-4 a sangrar no marcador do estádio e de todas as televisões, acompanhado pelo bailado dos que representam a cor do céu, o francês não teve dúvidas, voltaria a bater o penálti. Pep Guardiola já tinha avisado: em tempos adversos, esta gente da realeza estica o dedo e implora por responsabilidade. Afinal, como dizia um poema de Pessoa, “os deuses são deuses porque não se pensam”.
Limpou o rosto na manga que sustenta a pesadíssima braçadeira de capitão daquela entidade interestelar, mirou o apito do árbitro que tardava em manifestar-se, trocou demoradamente um olhar cheio de luxúria com a bola, suspirou como quem estava tenso, mero fingidor, e voltou a cravar os olhos no apito, desinteressando-se pelo operário de luvas que tinha à sua frente, assim como a rede de pesca que garante o ganha-pão dos monstros.
Quando ouviu o silvo, moveu-se como se estivesse atrasado para alguma coisa e tocou na bola como quem arranca algo gentilmente com uma colher. Enquanto a bola viajava para a baliza, atrás da mesma uma adepta teve tempo para abrir a boca e colocar a mão esquerda na cabeça, permitindo à outra descansar no peito. A trajetória da bola, que se fez panenka durante o périplo aéreo e fugaz, subiu mais do que a tradição recomenda. Golo. Quatro-três e servida a promessa de uma tremenda segunda mão no Santiago Bernabéu, onde 90 minutos é muito tempo.
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