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90 minutos de futebol no Bernabéu são muito longos?

90 minutos de futebol no Bernabéu são muito longos?
Denis Doyle - UEFA

A mítica frase de Juanito, depois de uma derrota no campo do Inter, na UEFA de 1984/85, é recuperada na adversidade, como uma promessa, é um aviso. Ou um fantasma que dá a mão ao divino. Esta noite há Real Madrid-Manchester City (20h00, Eleven Sports1), a contar para a segunda mão da semifinal da Liga dos Campeões (no primeiro jogo ficou 4-3 para os ingleses). Quanta eternidade existe em 90 minutos?

Pouco depois do apito final no Giuseppe Meazza, Juanito virou-se para um futebolista do Inter e, em italiano, disse-lhe: “90 minutos no Bernabéu são muito longos”. Era um aviso, talvez um conselho disfarçado. Afinal, antes daquela meia-final da Taça UEFA de 1984/85, os madridistas haviam virado eliminatórias em casa com HNK Rijeka (0-3, 3-1) e Anderlecht (0-3, 6-1). Um dos mais vulcânicos futebolistas de Espanha sabia do que falava.

Meia hora antes do segundo jogo começar, os jogadores do Real não acreditavam na classificação, admitiu mais tarde Emilio Butragueño. Mas os adeptos, sim. Míchel ficava boquiaberto com o que Juanito gerava junto daquela gente. E a profecia do avançado, suplente utilizado nos dois jogos e filho do que é imprevisível, seria cumprida.

Os golos da primeira mão, em Milão, de Liam Brady e Alessandro Altobelli tornaram-se inúteis e foram engolidos pelo Santiago Bernabéu, que se transformava num caldeirão apaixonado e sem memória. Santillana marcou logo aos 12’ e deixou tudo empatado aos 42’. Depois, com pouco mais de 30 minutos para jogar, foi Míchel a superar Walter Zenga e a colocar os de Madrid na frente. A festa, entre abraços enquanto afrouxavam os tensos músculos das pernas, foi feita na área do guarda-redes Miguel Ángel.

Peter Robinson - EMPICS

Esta quarta-feira, o Real Madrid tenta inverter o vento na segunda mão da Liga dos Campeões contra o Manchester City de Pep Guardiola (3-4), uma espécie de besta negra para aqueles lados. Se é certo que o treinador catalão só perdeu uma vez em nove visitas ao Santiago Bernabéu, se também é verdade que os campeões espanhóis caíram sempre das oito vezes que perderam na primeira mão da semifinal da Champions, os arquivos cheios de pó aconselham à calma. É que ainda falamos do Real Madrid, o tal que Juanito descreveu como ninguém.

Juan Gómez Gónzalez, assim era o nome de homem como os outros homens, chegou ao Real Madrid em 1977, proveniente do Burgos CF, e por ali ficou 10 temporadas. A frase mítica, sempre resgatada em momentos de necessidade ou de aperto como o que será vivido esta noite, antecedeu à conquista da Taça UEFA em 1985, numa altura em que o Real Madrid, o tal clube da realeza da Taça dos Campeões Europeus, estava esquecido de quem era. Não venceu o mais importante troféu europeu entre 1966 e 1998. A UEFA era, portanto, um lambe-feridas, uma caça ao orgulho. Um degrau para o céu que mais cedo ou mais tarde se curvaria para receber os operários de branco.

Na edição seguinte da UEFA, em 1985/86, os merengues, ainda treinados por Luis Molowny, voltaram a conquistar aquele caneco. E, pasmem-se, com algumas remontadas pelo caminho. Foi assim com AEK (0-1, 5-0), Borussia M´gladbach (1-5, 4-0) e, num diabólico capricho de um qualquer guião divino, Inter de Milão, outra vez nas meias-finais: 1-3, 5-1 (após prolongamento). Quase dá para imaginar o rosto de Zenga, Bergomi, Baresi e Altobelli perante a inevitável e presumível vaidade de Juanito. Na final, porque 90 minutos no Bernabéu eram muito longos, o Colónia foi atropelado na primeira mão (5-1), deixando pouco mistério para o partido de vuelta.

Ao longo dos anos 60, já como reis da Europa, viram-se algumas cambalhotas no marcador no estádio do Real Madrid, a contar para a Taça dos Campeões Europeus, nomeadamente com Nice (2-3, 4-0), Anderlecht (0-1, 4-2) e TSV 1860 München (0-1, 3-1).

Também o Sporting soube perfeitamente o que queria dizer Juanito, quando vencia no Bernabéu aos 88’, em setembro de 2016, e num abrir e fechar de olhos as coisas mudaram. Cristiano Ronaldo (89’) e Álvaro Morata (94’) assim o ditaram. Também o City, o rival desta noite, sentiu quase, quase a brisa da glória, na temporada 2012/13, quando vencia no templo blanco aos 85’. Karim Benzema, o génio que arquiteta o prazer e o golo, e Cristiano, já no desconto, viraram a cantiga para os rapazes de Mourinho.

Anadolu Agency

Em alturas cruciais também se deram tais divindades, que muitos começam a chamar outra coisa que não “sorte”, admitiu Jordi Cruijff, diretor-desportivo do Barcelona e filho de um semideus. Em meados dos anos 70, por exemplo, o Derby County bateu os espanhóis por 4-1 em casa, colocando-se em vantagem nos ‘oitavos’ da Taça dos Campeões Europeus, mas tropeçou redondo no relvado mítico (5-1). O Celtic, no final dessa década, ganhou 2-0 na Escócia e sofreu um pesado 3-0 fora, a contar para os quartos do mesmo torneio.

Mais recentemente ainda, em março, o PSG ganhou em Paris (1-0) e caiu, com um 3-1, no Bernabéu, com um hat-trick de Benzema, a maior esperança da seleção de estrelas de Carlo Ancelotti, o primeiro homem a conquistar as cinco principais ligas europeias e que os festeja fumando um charuto, um pouco à Lippi. Quanta eternidade existe em 90 minutos, os exemplos brotam como a qualidade dos futebolistas que jogam naquela farda branca.

O mago domador da fogueira das vaidades Carlos Ancelotti já avisou: é necessário um Bernabéu especial para quebrar o Manchester City, finalista vencido da última edição da Liga dos Campeões. Benzema prometeu magia, que se tratou de um sinónimo de ganhar.

Visionhaus

“Jogar no Bernabéu é um teste e uma grande sorte”, consentiu Pep Guardiola, na conferência de imprensa que lança o jogo desta noite. “Significa que estamos nas semifinais. Mas o Bernabéu é um grande teste para nós.” O treinador dos cityzens foi também questionado se os ingleses teriam de jogar melhor do que em Inglaterra, quando se sabe que houve momentos sufocantes e de um futebol sublime, o que ajuda a demonstrar a força do Real.

“É provável, sim”, respondeu. “Temos de ser melhores, mas podemos jogar muito pior do que jogámos e podemos ganhar. Não podemos negar que a minha avaliação é correta. Ninguém sabe. Às vezes obténs o que não mereces, às vezes não obténs o que mereces. Temos de jogar incrivelmente bem e ganhar o jogo.”

Com Modric a voar e um Benzema estratosférico, o Real Madrid vai fazer o que sabe e obedecer à única religião em que acredita: o triunfalismo. A frase de Juanito, que morreu num desastre de automóvel em 1992, talvez vá ecoar na alma dos futebolistas do Manchester City. E é aí que fica inaugurada a armadilha.

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