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Longa vida à profecia de Juanito

Longa vida à profecia de Juanito
PAUL ELLIS/Getty

Foi o falecido avançado merengue que um dia disse "90 minutos no Bernabéu são muito longos" e nem sequer estava a falar dos descontos. O Real Madrid está na final da Liga dos Campeões depois de marcar aos 90' e 90'+1, levando uma eliminatória que parecia fechada para o prolongamento, onde Benzema matou definitivamente o Manchester City. Uma reviravolta para a história, mais um momento para a memória coletiva da Champions

Não sei muito bem que cordelinhos Juanito puxa lá de cima, havia uma série de comédia espanhola que em tempos fez um sketch sobre um resort de músicos no céu, por isso imagino que também o possa haver para futebolistas e o avançado, que partiu num estúpido acidente de carro, como são todos, com apenas 37 anos, deve lá estar neste momento, daiquiri na mão (suponho que haja bar aberto lá em cima) e de sorriso trocista num dos cantos da boca porque la ha liado otra vez.

Ele já não está cá, mas a sua profecia vive, no seu máximo esplendor merengue. Ainda esta manhã contámos essa história de como no final da 1.ª mão das meias-finais da Taça UEFA de 1984/85, o aguerrido jogador do Real Madrid se acercou a um jogador do Inter, que havia vencido por 2-0, e disse, em italiano e tudo, para dar aquele polvilhado de beleza/drama: “90 minutos no Bernabéu são muito longos”. Já sabemos como acabou essa eliminatória, em casa o Real ganhou por 3-0 e chegou à final e aquela frase colou-se como uma tatuagem, podia até haver um quadro no túnel do estádio madrileno como há em Anfield, mas em vez de dizer “This is Anfield” diria “90 minutos no Bernabéu são muito longos”.

Minuto 90, precisamente, foi o minuto que o Real Madrid escolheu para agarrar as palavras de Juanito, abraçá-las como um mantra e mudar outra vez a história desta eliminatória com o Manchester City. Foi o minuto em que Camavinga lançou para Benzema, até então tão apagado, e o francês manteve com dificuldades a bola viva, transformando aquele salvamento in extremis num passe para Rodrygo, que emendou na cara de Ederson.

Aquele golo era o 1-1 e não chegava ao Real Madrid, que tinha perdido em Manchester por 4-3, mas o Santiago Bernabéu tornou-se então o sítio em que o tempo demora mais tempo a passar. Levantou-se, fez levitar a equipa. Um minuto depois, de novo o miúdo brasileiro, aposta de Ancelotti a meio da 2.ª parte, respondeu de cabeça a um cruzamento de Carvajal. Golo, 2-1, tudo empatado. 90 minutos no Bernabéu são muito longos e ainda por cima há descontos.

PIERRE-PHILIPPE MARCOU/Getty

Não se sabe que aura é aquela, que o Real Madrid é realeza da Champions já todos reconhecemos, sabe de cor o protocolo enquanto outros tentar decorá-lo à pressa para os testes, mas por vezes não há explicação, é algo esotérico, e agora vou socorrer-me das palavras do meu camarada Pedro Barata, que disse algo simples mas desarmante, porque nem sempre temos capacidade para explicar o divino: “Se acontece tantas vezes, não é por acaso”.

Carece talvez de fundamentação empírica a frase, mas o que fazer quando ela não existe? Talvez apenas aceitar e não tentar encontrar demasiadas explicações lógicas para o facto do Real Madrid ter ficado completamente anestesiado após o golo de Mahrez aos 73’ (grande lance de Bernardo Silva, a passar ao argelino no momento certo para este disparar com o seu mágico pé esquerdo), para ressuscitar a tempo, com Camavinga, Rodrygo e Asensio a darem o alento que Modric, Kroos e Casimiro já não conseguiam oferecer ao jogo.

Até esse minuto 90, o Real Madrid caiu na rede do Manchester City, que aguentou bem os períodos mais impetuosos da equipa da casa, a começar as duas partes. Benzema parecia em dia não, Kroos em esforço, Vinicius apagado. No City, quando o jogo passava por Bernardo Silva, estava ao jeito dos ingleses: controlado, com critério. Mesmo sem criar muitas oportunidades, a gestão do City era tão eficiente quanto a inteligência dos seus jogadores. E a intensidade e eficácia merengue estava longe.

Na 2.ª parte, o Real já teve mais Vinícius (quase marcava na primeira jogada após o intervalo), mas o golo do City praticamente à entrada dos últimos 15 minutos de jogo parecia uma sentença: daí para a frente a bola foi um exclusivo dos jogadores de Pep Guardiola e os 90 minutos pareciam afinal demasiado rápidos no adormecimento coletivo do Real. Pouco antes do golo do empate, Grealish quase fazia o 2-0 por duas vezes: na primeira salvou Mendy na linha de golo e à segunda foi Courtois a defender com a ponta do pé.

E a seguir apareceram Camavinga. E Rodrygo. Com pozinhos de Benzema.

Alex Livesey - Danehouse/Getty

Os dois golos de rajada levaram o jogo para prolongamento, com muita gente de lágrima no olho nas bancadas do Bernabéu, como se fosse impossível cair quando se tinha chegado até ali. E talvez fosse. Bastou um arranque de Camavinga aos 95’ para Valverde encontrar Benzema na área e o gato cósmico, como lhe chamam os nossos vizinhos, voltar a ser felino na área, algo que lhe estava a custar tanto durante o jogo: antecipou-se a Rúben Dias e o português entrou-lhe às pernas fora de tempo. Na grande penalidade, não houve direito desta vez a panenkada - talvez o coração de muitos não aguentasse - mas a classe análoga, Ederson para um lado e a bola para o outro e o 3-1 no marcador punha o Real Madrid na final, algo que nunca é impensável no Santiago Bernabéu, mesmo quando o relógio está a bater nos 90 e é preciso marcar dois golos.

O City esmoreceu, talvez até mais emocional do que fisicamente, é impossível não ficar desalentado por aquilo que os deuses do futebol querem, é o plano deles, ou então de Juanito lá em cima a mexer nos jogadores como marionetas, uma pessoa lá sabe o que é. Foden ainda assustou mesmo no final da 1.ª parte do prolongamento, Courtois salvou de novo e a partir daí jogou-se para os livros da história, para mais uma reviravolta que, a bem dizer, parecia quase um decreto, uma inevitabilidade, depois da forma como o Real se manteve vivo na eliminatória no jogo de Manchester.

Na final do dia 28, em Paris, haverá Liverpool, equipa também dada a estas coisas épicas, que em 2018/19 foi campeã europeia depois de virar um 3-0 a desfavor para 4-0 em Anfield, na meia-final com o Barcelona. Não há como dizer quem é mais favorito.

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