O dono da terra batida voltou

Editor de Desporto
Seis semanas são nada no grande espetro do tempo, mensurável embora sendo infinito. Esse é um dos paradoxos com que todo o humano tem de lidar: a aventura de cada um acabará sempre por findar, todos são passageiros na vida que toca viver. Mas, se crescidos o suficiente para terem colagens vívidas deste século na memória, também são sortudos, porque coincidiram com o apogeu da versão tenista de Rafael Nadal a reluzir o seu vigor. No último mês e meio, porém, ninguém o viu a competir.
E seis semanas ocupam pouco espaço na fita da cassete, passam num ápice, mas, em nadalesco, pareceram uma eternidade a ser contada após o espanhol ter brindado os comensais que apreciam ténis com um grito contra o tempo. Arrancou este ano com uma vintena de vitórias seguidas, recuperado de uma lesão que o afastara da competição na última metade de 2021 e a jogar como nunca, ganhando uma prova em Melbourne, o Open da Austrália, o torneio de Acapulco e perdendo na final do Masters de Indian Wells, onde o tempo lembrou Nadal de quanto marca o seu conta-quilómetros.
Uma fratura de stress numa costela parou-o. Rafa era, de novo, atordoado por uma mazela das que deslocam as conversas sobre ele para a sua idade, já são 35 anos e foi adiando o retorno aos courts até o ténis chegar aquela altura poeirenta do ano, que alaranja sapatilhas e abranda os ritmos. E foi em Madrid, onde existe o segundo dos Masters da terra batida antes de o circuito parar no tempo do pó de tijolo, que Rafael Nadal haveria de voltar ao ativo.
A 30 dias das contas do bilhete de identidade lhe marcarem 36 verões vividos, ele entrou no estádio de ténis da capital espanhola, com a pompa alheia a soluçar na ocasião — o microfone do speaker falhou quando ia gritar o seu nome. Com a pele chamuscada pelo sol, Nadal regressava à sua superfície, ao seu terreno, à matéria da qual a sua lenda será feita e cada pancada que deu foi igualmente um soco em cheio na face das dúvidas.
O primeiro set contra Miomir Kecmanovic pareceu um revisitar das razões que têm o espanhol como o melhor tenista a já ter pisado um campo de terra batida. Disparou uma bola atrás de outra cheia do top spin que só a sua pancada de direita sabe injetar e aquele seguimento de pancada, aquela raquete a terminar bem encavalitada nas suas costas, a destruir o sérvio aos poucos. Em 36 minutos, Nadal fez o 6-1 que intervalou o jogo e o deixou aproveitar a pausa para ir à casa de banho, encharcado em suor.
Quando voltou, com uma camisola nova e seca, jogaram apenas um ponto quando as nuvens não aguentaram as lágrimas, obrigando ao fecho do teto amovível. Uns 20 minutos de espera bastaram para Kecmanovic, com os seus 22 anos a sussurrarem perto do top 30 do ranking (é o atual 32.º classificado), ter dois jogos de serviço potentes e assertivos para logo fazer melhor do que o atropelamento que sofreu no primeiro set. E dele nada se extraía, nem uma centelha de emoção na cara, e com a sua frieza sucumbiria quando Nadal o quebrou para fazer o 3-2.
Houve depois um vislumbre de reatividade sentimental no sérvio, que cerrou o punho e ergueu-o um pouco diante do corpo quando devolveu o break ao espanhol. Fecharia os dedos da mesma mão pouco depois, ao sobreviver a um par de tentativas de Nadal lhe quebrar o serviço no jogo mais longo da partida. E as manifestações de Kecmanovic perderiam a timidez, o punho fechado lá se repetiria e o tenista da pala do boné para trás elevaria o seu jogo para obrigar o detentor de Grand Slams a servir para não ficar sem o segundo set.
Com o peso nas perdas a ser visível e a bater mais bolas longe das linhas do quintal do adversário, Nadal aguentou-se com um dos jogos de serviço mais rápido que logrou, fechando-o com um ás e, por momentos, emperrando o martelar de pancadas que Kecmanovic executava com os pés sobre a linha de fundo do court. Mas há tenistas que são esponjas de ímpetos quando mais lhes dá jeito serem porosos e o espanhol de incontáveis batalhas vividas roubou o serviço do sérvio para um possível último saque do jogo ser dele.
Mas o punho que o sérvio repousava na coxa direita ao aguardar por bolas de serviço ainda seria erguida uma última vez, o treinado por David Nalbandian, vencedor no seu tempo ali em Madrid, conseguiria o break que levou a decisão do set para o tie-break. Aí, onde as margens são fatiadas à mínima finura, Kecmanovic sucumbiria com uma direita frouxa, o pior dos erros não forçados que cometeu no jogo logo quando se estava a agigantar, para Rafael Nadal fechar o seu retorno aos courts com um ás.
Seis semanas depois, o espanhol que dizem já ter os melhores anos atrás das costas esmurrou o ar em celebração, voltou a trocar-se para vestimentas secas, tapou com um boné a cabeça cada vez mais aquém de cabelo e assinou o ecrã de uma câmara. Rafael Nadal ganhou onde é mais expectável que ganhe, seja qual for o tempo que lhe resta no depósito.
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