O Giro de Itália e os sonhos cor-de-rosa de João Almeida
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A Volta a Itália de 2022 arranca esta sexta-feira em Budapeste e João Almeida entra pela primeira vez na primeira grande volta do ano como um dos favoritos à vitória final. O perfil, muito montanhoso e com pouco contrarrelógio, não beneficia o português, mas ao seu lado, na UAE Emirates, terá uma equipa para o proteger quando o terreno empinar. Richard Carapaz (Ineos) e Simon Yates (BikeExchange) aparecem como os grandes rivais na geral
Para todo o adepto médio de ciclismo, que esperava ansiosamente pelo verão ciclístico, o Giro de Itália sempre foi uma espécie de interlúdio primaveril. Dominada nos derradeiros anos do século passado e na primeira década deste milénio essencialmente por ciclistas italianos (e equipas italianas), a vitória de Alberto Contador em 2008 abriu uma espécie de caixa de pandora para a primeira grande volta do ano: apesar do Tour continuar a ser a prova de ouro para os melhores ciclistas do mundo, de repente alguns deles tentavam a sua sorte nas inclementes e intermináveis montanhas de Itália.
Contador ali venceu também em 2015, Vincenzo Nibali em 2013 e 2016. Nairo Quintana foi buscar ao Giro em 2014 o triunfo que tanto tentou no Tour mas não conseguiu e Chris Froome venceu a prova em 2018, já depois das quatro vitórias na Volta a França. Há um ano, foi no Giro que o colombiano Egan Bernal voltou aos triunfos em grandes voltas, depois de um pós-Tour de 2019 complicado, com quedas e lesões. O Giro deixou definitivamente de ser uma corrida de nicho para ciclistas italianos que em outras voltas tremiam, para passar a ser um viveiro de novas estrelas ou espaço de ressurreição de outras.
Mas, há dois anos, o Giro passou a ser, também, uma questão nacional. Uma questão portuguesa, leia-se. Era outubro e a Volta a Itália deixava as suas datas originais de maio para se realizar no outono, à conta da pandemia. Na terceira etapa, um miúdo português, de seu nome João Almeida, então na Deceuninck-Quick Step e na primeira época como sénior, subia ao topo da classificação geral e foi naquele rosa claro que andou durante 15 dias, aguentando os altos e baixos do percurso e as etapas maratona no seu estilo pouco explosivo mas gregário.
Por cá ainda se acreditou numa inédita vitória portuguesa no Giro, mas na chegada ao alto em Laghi di Cancano, a apenas três dias do final, a resistência do ciclista das Caldas da Rainha terminou - acabou em 4.º na geral, numa altura em que meio Portugal já parava para ver os ciclistas romper pelas estradas de Itália.
Há dois anos, João Almeida andou 15 dias de rosa no Giro. Portugal ganhava uma estrela
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João Almeida era então um jovem de 22 anos e foi imediatamente elevado à condição de estrela do desporto nacional. Os resultados que se seguiram não desmentiram um epíteto que até poderia parecer apressado. No ano seguinte voltou ao top 10 do Giro (foi 6.º) e venceu a Volta à Polónia e a Volta ao Luxemburgo. Este ano já foi 3.º na Volta à Catalunha, onde venceu a etapa-rainha, e 8.º no Paris-Nice.
O ano de 2022 foi de mudança para o português: deixou a disciplina da Deceuninck-Quick Step, equipa belga com pouca vocação para a geral das grandes voltas, e assinou pela UAE Emirates, onde já convivia uma pequena colónia de portugueses. Já a aposta pessoal no Giro manteve-se, até porque a Volta a França será sempre assunto dentro da equipa para o esloveno Tadej Pogacar. E é, assim, como líder da equipa dos Emirados Árabes Unidos que Almeida inicia esta sexta-feira o seu terceiro Giro, mas o primeiro como um dos favoritos à geral, depois de há um ano ter começado como escudeiro de luxo de Remco Evenepoel. O prodígio belga, nascido em 2000, estreou-se em grandes voltas no Giro de 2021, com extraordinário entusiasmo à volta. As coisas não correram bem: quando desistiu, no final da etapa 17, já a corrida de João Almeida estava comprometida, ele que pareceu sempre mais capaz de pernas do Remco e do que o 6.º lugar poderia espelhar. Em 2022, com uma equipa finalmente a trabalhar para si, poderá ser o tira-teimas para o português, que tem o talento (e o tempo) para se tornar no primeiro ciclista do nosso país a vencer uma das três grandes voltas do ciclismo.
Imprevisibilidade nos favoritos
É possível que o Giro seja a mais imprevisível das grandes voltas e por isso apontar favoritos claros é sempre como jogar à roleta russa. Contudo, as mais importantes publicações da modalidade, como o site Cyclingnews, não têm dúvidas em colocar João Almeida num curto grupo de possíveis campeões, numa prova que não terá Tadej Pogacar nem Primoz Roglic, os dois eslovenos que dominam o ciclismo atual e que apostam tudo na Volta a França - Egan Bernal, vencedor de 2021, está ainda a recuperar de um grave acidente na pré-época, mas iria sempre ao Tour.
Contra o português estará o percurso deste ano, de um Giro que arranca esta sexta-feira em Budapeste, capital da Hungria, e termina em Verona a 29 de maio. Será uma Volta a Itália pejada de montanha, com a primeira chegada ao alto logo à etapa 4, no Monte Etna. Haverá mais quatro chegadas ao alto e outras duas etapas com montanhas de primeira categoria a menos de 10 quilómetros da meta. A terceira e última semana de prova é particularmente acidentada e será aí que o Giro se vai ganhar ou perder.
Richard Carapaz, vencedor em 2019, é um dos principais favoritos ao triunfo em Verona
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E isso não são notícias fantásticas para Almeida. O português não é o mais potente e explosivo dos trepadores, mas consegue acompanhar os melhores, ao seu ritmo. Contudo, onde Almeida verdadeiramente marca a diferença para a concorrência é nos contrarrelógios. Há dois nesta edição, o último dos quais na derradeira etapa, mas em conjunto não totalizam nem 30 quilómetros de luta direta com o tempo que passa. Ainda assim, terá a seu lado os compatriotas Rui Oliveira e Rui Costa, Alessandro Covi, um bom all-arounder e, quando o terreno empinar a sério, um excelente trepador no apoio, o italiano Davide Formolo - armas, contudo, longe do poderio coletivo de outras equipas.
Olhando para o perfil das etapas, Richard Carapaz (Ineos) e Simon Yates (BikeExchange) serão as apostas mais seguras. O equatoriano, trepador por e de excelência, procura repetir a surpreendente vitória de 2019, que confirmou com pódios na Volta a Espanha de 2020 e Volta a França de 2021 e com a medalha de ouro olímpica em Tóquio. Já o britânico quererá vingar 2018, quando passou 13 dias de rosa para se desmoronar na última semana. Mas foi também na última semana da edição do ano passado que Yates chegou a fazer cócegas à liderança de Egan Bernal.
Pela pista de fora correm nomes como Romain Bardet (Team DSM) Miguel Ángel López (Astana), Pello Bilbao (Bahrain), Wilco Kelderman e Jai Hindley (Bora-Hansgrohe) ou Hugh Carthy (Education First), ficando ainda na dúvida o que pode render Tom Dumoulin (Jumbo-Visma), campeão em 2017, mas que há muito luta com problemas físicos e de confiança.
A última dança de Alejandro Valverde, o espanhol de 42 anos que vai terminar a carreira no final do ano, será outra das histórias deste Giro. O eléctrico Mathieu van der Poel (Alpecin-Fenix), um dos maiores especialistas de clássicas da atualidade, animará seguramente as primeiras etapas e a média montanha, antes do terreno encabritar-se definitivamente.
O Giro de 2022 andará por estradas húngaras nas primeiras três etapas, com um contrarrelógio de 9,2km logo no sábado, pelas ruas de Budapeste. É a 14.ª vez que a Volta a Itália arranca fora do país - a Grande Partenza na Hungria estava marcada para 2020, mas a pandemia trocou as voltas à organização. Dois anos depois, as margens do Rio Danúbio vão finalmente dar as boas-vindas a alguns dos melhores ciclistas do mundo.