Expresso

“Ainda sou o velho Cavendish”: o supersónico britânico chega às 160 vitórias na carreira, depois de vencer os seus demónios

“Ainda sou o velho Cavendish”: o supersónico britânico chega às 160 vitórias na carreira, depois de vencer os seus demónios
Stuart Franklin/Getty
O ciclista da Ilha de Man foi o mais rápido na terceira etapa do Giro, voltando a vencer na corsa rosa nove anos depois da sua última participação. Em 2020, após quatro temporadas de más prestações, nas quais teve mononucleose infecciosa e sofreu de depressão, Cavendish admitiu retirar-se, mas à beira de cumprir 37 anos continua a ser um dos mais velozes sprinters do pelotão
“Ainda sou o velho Cavendish”: o supersónico britânico chega às 160 vitórias na carreira, depois de vencer os seus demónios

Pedro Barata

Jornalista

Balatonfüred fica localizada na Hungria, a hora e meia de carro de Budapeste, numa zona turística e que, portanto, o governo do país quer promover. É por essas intenções — que, claro, não são políticas, porque desporto e política não se misturam — que se explica que ali tenha terminado a terceira etapa do Giro de Itália, corrida cujas três primeiras tiradas decorreram por terras húngaras.

A cerca de 300 metros da linha de meta, os mais rápidos corredores acumulavam-se na azáfama habitual das chegadas em pelotão compacto. No meio daquele caos que os diretores das equipas querem organizado, um homem de 36 anos, mais baixo do que a maioria dos seus adversários, agachou a cabeça, atirando o corpo para a frente e tentando empurrar a bicicleta com todo o peso e potência do seu corpo. Afinal de contas, a fórmula que segue há tantos anos.

Lançando o sprint desde muito longe, Mark Cavendish conseguiu manter a liderança com o passar dos metros, deixando para trás concorrência de créditos firmados como Arnaud Démare ou Fernando Gaviria. Quando se levantou da máquina que conduz para celebrar o triunfo, o britânico assinalava a 160.ª vitória da sua carreira, a 16.ª no Giro de Itália, competição que não disputava desde 2013.

Foi o 53.º triunfo de Cavendish em grandes voltas (tem 34 no Tour — valor só igualado por Eddy Merckx — e três na Vuelta), uma cifra apenas superada por Mario Cipollini, com 57 vitórias em etapas nas três principais corridas, e pelo açambarcador de recordes que é Eddy Merckx (64). Foi uma subida ao pódio cimentada nas receitas do Cavendish vintage: um comboio bem organizado na preparação da chegada; audácia para lançar o sprint; potência e resistência para manter a liderança; e, claro, aquele sorriso clássico ao cortar a meta, uma expressão de felicidade de quem parece sempre festejar como se fosse uma novidade.

Mas se o corredor que cumprirá 37 voltas ao sol durante a presente edição do Giro celebrava triunfos com aquela cara de alegria mesmo nos anos em que chegada ao sprint era sinónimo de vitória de Cavendish, os triunfos que agora acumula têm sabor especial. Porque, até há bem pouco tempo, Mark Cavendish parecia ter deixado de ser nome associado a vitórias em corridas.

Em 2020, salpicado por lágrimas que lhe iam escorrendo, o britânico disse, no final da Gent-Wevelgem (uma das principais corridas de um dia da Bélgica), que "talvez tivesse sido a última corrida" da carreira. Aquelas palavras ajustavam-se a um Cavendish que tinha concluído uma quarta temporada consecutiva longe dos seus padrões habituais.

Entre 2007 e 2016, o atleta de Douglas, capital da ilha situada no Mar da Irlanda, foi o maior acumulador de vitórias do pelotão mundial. Nesses anos, Mark levantou os braços ao ar 143 vezes, 48 delas em grandes voltas, sendo campeão do mundo em 2011. No entanto, depois de em 2016 vencer quatro etapas no Tour, algo mudou.

Tudo começou quando, em abril de 2017, Cavendish sentiu "fadiga inexplicável" após um treino, tal como o próprio confessou numa entrevista ao "The Times". Cavendish tinha mononucleose infecciosa, uma infeção viral causada pelo vírus Epstein-Barr, que exige muito repouso.

Com a doença vieram resultados piores e, segundo o que o ciclista confessou à "GQ" em 2021, o "gatilho" para outro problema: a depressão, que lhe foi diagnosticada em 2018. "Passei de ser o melhor do mundo para um dos piores da noite para o dia", confessou à BBC. Cavendish, o velocista quase imbatível durante os anos dourados — ao ponto de ficar em segundo numa chegada em pelotão compacto ser motivo de notícia e vencer ser mera razão de rotineiro encolher de ombros —, só conseguiu uma vitória em 2017 e outra em 2018 (nenhuma em grandes voltas), ficando a zeros em 2019 e 2020.

Quando o campeão do mundo em 2011 falou em retirar-se em outubro de 2020, alguém estava a ver as declarações na televisão, apercebendo-se que o britânico "parecia desesperado". Tratava-se de Patrick Lefevere, emblemático chefe da Quick-Step, uma das principais equipa do pelotão internacional, pela qual Cav correra em 2013 e 2014. Lefevere pensou que "não podia ser verdade" que Cavendish abandonasse o ciclismo, pelo que ligou ao seu ex-pupilo e ambos acordaram um contrato para 2021.

Poucas semanas antes do começo do Tour de 2021, Sam Bennett, que estava escalado para ser o sprinter da equipa belga na grand boucle, lesionou-se. Cavendish, que não participara em nenhuma grande volta nos dois anos anteriores e não tinha nenhuma vitória de etapa nas principais corridas há cinco, foi escolhido para ser o finalizador da Quick-Step.

Ajudado por Lefevere, que o "entende como pessoa" e que cria o "ambiente feliz" de que o britânico "precisa", o Tour de 2021 foi o inesperado e triunfal regresso do velho Cavendish. Com quatro vitórias de etapa no Tour, o britânico igualou os 34 triunfos em tiradas de Mercx e, depois do primeiro desse póquer de subidas ao pódio, não escondeu a emoção: "Há três semanas jamais teria imaginado isto. Esta corrida [o Tour] deu-me a vida que tenho e eu dei-lhe de volta toda a vida que tenho em mim. Estou a viver um sonho".

Christian Prudhomme, diretor do Tour, classificou Cavendish como "o maior sprinter da história do ciclismo". O velocista foi nomeado para "regresso do ano" nos prémios Laureus. No total, foram 10 as vitórias no 2021 da redescoberta do supersónico homem da Ilha de Man.

Anadolu Agency/Getty

Em 2022, Cavendish tem provado que voltou para ficar, tendo o triunfo na terceira etapa do Giro sido o quarto da temporada. O britânico assume "já não ser novo", mas garante que "ainda é o velho Cavendish": "Simplesmente, quero continuar a ganhar, não sei quantas corridas mais. Amo fazer corridas de bicicletas".

Apesar do espírito carpe diem que o atleta da Quick-Step Alpha Vinyl Team apresenta, a sua vitalidade renovada legitima que se olhe para os livros dos recordes à medida que as vitórias se voltam a acumular. E, naturalmente, vencer mais uma tirada no Tour e isolar-se como o homem que mais vezes elevou os braços ao céu na principal corrida por etapas do mundo é um objetivo primordial.

Desde o primeiro triunfo de Mark Cavendish, numa corrida na Polónia em 2006, até à terceira etapa do Giro, 16 anos passaram. Em boa parte deles, Cav foi o velocista imbatível, o homem que, quando a velocidade do pelotão parecia atingir o máximo, era capaz de acelerar um bocadinho mais, mantendo esse vigor durante tempo suficiente para ser inalcançável. No entanto, houve também anos de sofrimento e dúvidas, com uma "quebra física" à qual se seguiram "os problemas de saúde mental".

Agora que está de volta à ribalta, Cavendish quer usar a "plataforma que tem" para "quebrar o estigma" sobre saúde mental: "Sei que não é levado a sério. Eu não acreditava que os problemas de saúde mental fossem algo sério e essa é a ironia de ter sofrido de depressão. Não tem nada a ver com ser fraco ou forte da cabeça. É uma doença. É algo que não podes controlar. Em todas as entrevistas que faço, falo sobre os meus problemas porque se uma pessoa pode extrair alguma ajuda deles, então já terá valido a pena".

Por 160 vezes, Mark Cavendish usou a velocidade das pernas para cortar a meta em primeiro. Mas, no meio de tamanha vertigem, outras corridas decorreram na sua mente. Enquanto sprinta entre os melhores do Giro, Cavendish vai deixando claro que mesmo as mais vigorosas pedaladas começam na cabeça.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt