Há um ponto em que o mítico braço esquerdo de Rafael Nadal se estica e com ele a raquete, a bola é alcançada e batida e o pé esquerdo derrapa um pouco na argilosa superfície, em Roma. O ímpeto frena cedo, o deslizar parece ser interrompido por uma lomba de dor e o espanhol tarda muito pouco em denunciá-lo: ao endireitar o corpo, tem um coxeio mal disfarçado no andar ao qual sucumbe, poucos passos depois, quando se debruça sobre uma pequena banca onde estão as toalhas à disposição dos tenistas, para secarem o suor. Deposita lá os braços e curva-se, baixando a cabeça por entre os ombros, rende-se à própria evidência.
Nadal não está bem.
Há outra bola, no mesmo terceiro set, que lhe pediu um ligeiro pique e ameaçou tentar. Quase cambaleou sobre si próprio, nem a raquete projetou. Zelosa pelo titubear de uma lenda, a câmara apertou um plano na cara do espanhol, que cerrava os olhos e vincava as rugas nas têmporas, abanando a cabeça em desaprovação da dor com que o corpo o lembrava, à bruta, de estar a remar contra o tempo e já não a navegar à bolina dos seus melhores anos. Mas isso era a ilusão com que Nadal se fez de mágico nas barbas de toda a gente que o vê.
O truque ainda prevaleceu durante o primeiro dos sets jogados contra Dennis Shapovalov, com quem coincidiu numa raridade do ténis. Estavam dois canhotos a defrontarem-se nos oitavos-de-final do Masters de Roma, aquela simplista explicação de o top-spin de Nadal provocar um ressalto tão elevado que azucrina para a esquerda de destros talvez não fosse tão eficaz contra o loiro canadiano, mas não, o espanhol apresentou-se com a leveza de pés muito dele, disparou winners de todo o lado e fixou um 6-1 que fazia antever um passeio.
O segundo set ainda teria momentos Nadalescos, reminiscentes de tempos seus mais cabeludos e menos rugosos, houve uma esquerda que bateu do fundo do court e paralela à linha em que prolongou o gemido replicado em cada pancada para o transformar em rugido festivo do winner conseguido, fletindo os músculos dos braços e acabando a gritar para a bancada. A ilusão começaria a murchar pouco depois, perdido esse parcial por 5-7 antes de Shapovalov levar o derradeiro por 6-2, fatiando pedaços do espanhol enquanto a dor o ia colocando a jeito de se despedaçado.
A bola que deu o jogo ao elegante canadiano da esquerda a uma mão foi reveladora: caindo-lhe perto dos pés e com ele a pisar a linha de fundo, Nadal respondeu quase sem ajustar o corpo, batendo-a para fora e plantado na terra batida que é a matéria da qual a sua lenda se fez. Os esgares de dor já tinham sido vários por essa altura, até com ele sentado no banco a descansar entre pontos, o coxear visível ao mover-se no campo.
Rafael Nadal admitiria o que era por demais visível. “Não estou lesionado, sou um jogador que convive com uma lesão”, resumiu, na língua da tristeza perante o inevitável ao qual resistiu, preferindo aguentar a desistir do torneio que conquistou o ano passado. “É o meu dia a dia, é difícil e, às vezes, custa-me a aceitá-lo. Doía-me muito”, desabafou no final, quando falou abertamente do problema no pé esquerdo que o condiciona há muito e se encavalita nos seus dias de forma algo imprevisível. Esta sexta-feira, porém, ele já sabia que “ia acordar fatal”.
O espanhol prolongou a sua confissão e falou sobre “a verdade” dos seus dias. “Vivo com um monte de anti-inflamatórios diários para me dar opções de treinar, esta é a minha realidade, mesmo assim há muitos dias como o de hoje, em que não dá. Se não tomar nenhum anti-inflamatório, vou coxo”, lamentou, com mais resignação do que tristeza na voz que cortou o silêncio da conferência de imprensa. E não, “não foi a fazer um movimento”, garantiu — “a dor está aí sempre”.
Já existia em janeiro, quando ressurgiu heroicamente após mais de meio ano de paragem causada por um problema nas costas e conquistou o Open da Austrália, talvez enganando-se igualmente a si próprio com medicamentos para anestesiar os berros de um corpo fustigado por tantas batalhas. “Dói-me sempre, tenho uma lesão crónica e incurável, é parte do meu dia a dia e ainda mais quando jogo encontros longos”, avisara já em Madrid, onde perdeu nos quartos-de-final perante o prodigioso Carlos Alcaraz, mas sem evidenciar os mesmos sinais castradores da dor que o apoquentou em Roma.
A paragem seguinte no roteiro seria sempre Paris, nos campos alaranjados de Roland Garros onde se empoeirou a lenda de Nadal e ele não assume, mas resume em “sonho” o que se antevia para este ano: o espanhol lá ir caçar um 14.º título para engrandecer ainda mais o seu reinado para o qual todo o adjetivo é curto. O Grand Slam da terra batida arranca a 22 de maio e requer duas semanas de esforço continuado a quem o pretende domar. Rafa vai regressar a Maiorca e “talvez as coisas estejam melhor num par de dias”, mas ele não sabia ainda se havia “de descansar ou treinar”, apenas que tem “uma meta à frente” e quer “continuar a sonhar com ela”.
Para chegar ao ponto de congratular o facto “o médico” ter presença garantida ao seu lado, em Paris, e referenciar que “é sempre uma ajuda” demonstra o estado atual de um dos maiores desportistas que já existiu, cujo corpo o obriga a cerrar os dentes a cada lembrança de que caminha para os 36 anos. “Bom, até que a minha cabeça me deixe assumir o desafio de que os dias são assim, vou continuar”, disse, entre os relatos de dor, anti-inflamatórios e coxeios. “Mas suponho que chegará o dia em que a minha cabecita diga basta”, concluiu, sem surpresas.
“Porque não se pode viver assim.”