Expresso

Com os pés na relva e os olhos inundados, Bellerín disse adeus ao Betis que o pai ensinou a gostar

Com os pés na relva e os olhos inundados, Bellerín disse adeus ao Betis que o pai ensinou a gostar
CRISTINA QUICLER

Héctor Bellerín, que terá de voltar ao Arsenal nas próximas semanas, chorou a frase que havia dito com palavras quando foi apresentado no Benito Villamarín: "O futebol não é só dinheiro, o sentimento é importante". Porém, e porque às vezes também tem a ver com dinheiro, o colega Borja Iglesias desafiou um outro futebolista do balneário andaluz para criarem uma angariação de fundos para o catalão ficar em Sevilha

Às vezes, a felicidade é um lugar. Não se sente, simplesmente chega-se lá, os minutos ficam mais gostosos. Quando Héctor aterrou no nosso mundo como aterra toda a gente, algures em 1995, o rapaz que teria um tato diferente para questões da sociedade mergulhou no beticismo mais verdadeiro que há.

O culpado foi Pepe, o pai, que o obrigava a vestir aquelas camisolas míticas verdes e brancas, quem sabe com Denilson, Finidi, Alfonso ou Joaquín inscrito nas costas. Como não raras vezes acontece, aquela coisa mágica entranhou-se então na casa das máquinas que liga os órgãos humanos do menino que se fez homem, misturou-se com a pele e fez latir o coração num batimento único, aparentemente eterno. Mesmo quando foi para Londres, ainda garoto, à procura da carreira de futebolista profissional.

A vida, como sempre, dá muitas voltas e, depois de uma década em Inglaterra, Héctor Bellerín tratou de pagar algumas dívidas do passado. Uma delas foi jogar finalmente com aquela farda que tanto emociona Pepe. E o regresso, em setembro de 2021, significava fazer o pai feliz, “cumprir um sonho dele” que, no fundo, era dos dois. Uma temporada e uma Copa del Rey na mochila depois, chegou a hora de dizer adeus.

E as lágrimas também se despediram das suas entranhas, lavando o rosto do catalão, quando o árbitro apitou para o final do Betis 2-0 Granada. Bellerín tremeu. Desceu ao balneário, voltaria sozinho. Os adeptos, alguns dos resistentes, pediam-lhe que ficasse em Sevilha. Ele acenou como quem gritava que o faria se pudesse.

Depois sentou-se, mirou alguma coisa no céu ou numa bancada mais além, e descalçou-se. As botas, primeiro. Depois, as meias. A conexão era física também, aquela relva que tanto o aproximou ao pai e à família era o seu chão, metafórica e literalmente. Pouco depois, resgatando-lhe um sorriso honesto, recebeu a companhia de Borja Iglesias e Aitor Ruibal, dois grandes amigos do balneário que só o queriam amparar.

Voltou a ficar sozinho, a cozinhar pensamentos, a arrumar desabafos que não se ouvem. Os pés ainda sentiam a relva daquele templo especial da Andaluzia. Os braços da mãe apertaram-no. A seguir, foi o abraço do pai, o senhor responsável por aquele sentimento terno e único. Pareciam despedir-se de alguém realmente importante, insubstituível.

Limpou os olhos, uma e duas vezes, ajeitou o cabelo, enquanto certamente ouvia as palavras ajuizadas de quem o levou até ali.

Nas redes sociais, Dani Ceballos, outro grande amigo, celebrou o abraço com o pai, glorificando o beticismo quase insuperável. Algumas horas depois, Borja Iglesias, o avançado que também é o panda, desafiou Ruibal no Twitter para criarem uma angariação de fundos para Bellerín ficar no Benito Villamarín. “É necessário”, retorquiu o colega de ofício e do tal momento a três no relvado.

O clube, que ainda sonhou com o apuramento para a Liga dos Campeões, despediu-se dos seus adeptos no domingo. Para Bellerín, o calendário apressa-se agora para comer dias e chegar ao fatídico 30 de junho, altura em que o contrato com os sevilhanos termina e terá de voltar ao Arsenal, o clube onde o espanhol, de 27 anos, chegou no verão de 2011, proveniente das escolas do Barcelona.

CRISTINA QUICLER

Héctor Bellerín é muito mais do que um mero futebolista.

Apaixonado por fotografia, vegano e ativista, comenta temas sensíveis onde normalmente os jogadores de futebol não se arriscam, como a homossexualidade e a guerra na Ucrânia e outras guerras esquecidas. E as lágrimas, que provavelmente são só por amor ao seu Betis, também podem dividir-se em lamentos, já que voltará para perto de alguns adeptos que lhe chamavam “lésbica”, por ter o cabelo grande, e proferiam insultos homofóbicos.

“Aprendi a deixar crescer uma pele grossa, mas isso pode afetar-te”, admitiu, em 2018, numa entrevista ao “The Times”. E a dúvida, relativamente a si próprio, aparece matreira como uma espécie de chicotada. “O problema é que as pessoas têm uma ideia de como deve parecer um futebolista, de como se deve comportar, do que devem falar. Se fizeres algo um pouco diferente, tornas-te um alvo.”

Talvez por isso chore, porque em Sevilha encontrou o seu lugar, talvez a felicidade e o amor em forma de sítio. Quando tatuou o nome naquele pedaço de papel que lhe garantia o céu durante um ano, Bellerín revelou um outro lado nem sempre ouvido neste desporto: “O futebol não é só dinheiro, o sentimento é importante”.

O que vem aí é agora um mistério. Será que voltará a vestir a camisola do Arsenal? Terá outros clubes, como teve no verão passado, interessados no seu concurso? Ou conseguirá, num espécie de regresso ao futuro, enfiar-se outra vez naquela camisola do Betis que tanto faz o pai sorrir?

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: htsilva@expresso.impresa.pt