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João Almeida, o homem-elástico que já é um meme (dos bons)

João Almeida, o homem-elástico que já é um meme (dos bons)
LUCA BETTINI/Getty

O português acaba a primeira semana do Giro a 12 segundos da camisola rosa e confirmando aquilo que dele há tanto se diz: não é o mais explosivo dos trepadores, mas livrar-se dele não é fácil, ao ponto da internet já lhe dedicar algumas homenagens. Os objetivos de pódio continuam intactos, para não dizer reforçados

João Almeida já é um meme. Não daqueles que nos fazem apontar o dedo e ceder à natureza humana de rir com alguma da desgraça alheia. É um meme dos bons, dos que nos fazem abanar a cabeça para cima e para baixo, em sinal de aprovação. É engraçado porque é verdadeiro. No domingo, após a etapa que terminou no terrível Blockhaus, uma montanha que apesar de estar bem no centro de Itália vai roubar o nome ao alemão e que quer dizer algo como “casa de pedra”, as redes sociais encheram-se de menções bem-humoradas/tementes ao português. Num dos memes, o líder da UAE Emirates era representado pelo ébrio da série Simpsons, Barney Gumble. O Moe, neste caso a representar os restantes favoritos ao Giro, expulsava Barney do bar para no frame seguinte ele aparecer de novo dentro do bar.

A graçola está bem apanhada, porque nos últimos quilómetros da etapa 9 da Volta a Itália João Almeida foi constantemente expulso do grupo dos favoritos quando alguém atacava na frente, para pouco depois ressurgir no mesmo grupo, nunca quebrando definitivamente, sempre com pulmões e inteligência para encontrar o seu ritmo, constante, sustentado, como um elástico que nunca rebenta. Do jovem de 23 anos, que irrompeu pelas nossas casas há dois anos, quando acompanhámos a sua incrível odisseia de duas semanas de rosa na Volta a Itália, sabe-se que não é um trepador nato, daqueles leves que nem uma pena e diminutos em altura, que voam quando o alcatrão empina e o ar fica mais rarefeito. A especialidade do caldense é a luta contra o relógio e nas montanhas ele corre mais com o cérebro do que com as pernas: não sendo explosivo, ele encontra a pedalada que mais lhe convém, como um eletrocardiograma estável.

Os memes, diga-se, são representações exageradas de algo mais ou menos factual e que se repete, moldando aquilo a que podemos chamar “comportamento”. E se há memes dedicados a João Almeida, é porque ele já habituou toda a gente a isto. Os 15 dias que andou de rosa em 2020, o seu primeiro ano como profissional, foram feitos destas jornadas de sacrifício e cabeça fria, de montanhas impossíveis que o português foi ultrapassando à base de força mental, de não se precipitar, de conhecer bem demais aquilo que pode ou não pode dar, impressionante para um rapaz acabado então de fazer 22 anos. João Almeida só teve nesse ano um verdadeiro dia menos bom, já na última semana, e foi aí que a camisola de líder lhe fugiu. Em 2021, a trabalhar para Remco Evenepoel, talvez não tenhamos tido a oportunidade de ver o verdadeiro João Almeida e ainda assim acabou em 6.º. Agora que ele se mudou e é líder de equipa, está aí de novo, um tipo difícil de vergar, de deixar para trás, o homem-elástico, que estica e estica mas poucas vezes rompe.

Almeida na chegada ao Blockhaus
Tim de Waele/Getty

E é por isso que o português chega ao final da primeira semana do Giro a apenas 12 segundos da rosa, que neste primeiro verdadeiro dia de descanso está no corpo de Juan Pedro López (Trek), à conta de uma fuga no primeiro dia de ação em Itália, após três etapas na Hungria. O espanhol defendeu bem a liderança, com um esforço hercúleo no Blockhaus, mas em breve não fará parte das contas para a vitória. Já João Almeida fará, seguramente. O objetivo, disse antes de dar as primeiras pedaladas neste Giro, ainda não será a vitória, mas chegar ao pódio. E esse objetivo não só está intacto como saiu reforçado nestes primeiros dias, numa altura em que alguns dos favoritos como Simon Yates (BikeExchange) - perdeu mais de 10 minutos no Blockhaus - ou Wilco Kelderman (Bora) já parecem afastados da luta.

A semana até nem começou de forma perfeita para o português, que logo à segunda etapa, um curto contrarrelógio de menos de 10 quilómetros pelas ruas de Budapeste, perdeu 18 segundos para Yates, num dos terrenos em que Almeida é mais forte. Não ganhou também tempo significativo a Richard Carapaz e Romain Bardet (Team DSM), que parecem, neste momento, os maiores favoritos à vitória final. Mas com o britânico a ceder no Blockhaus, ainda com mazelas de uma queda nos primeiros dias, o português tornou-se subitamente no candidato mais bem colocado na geral à entrada da segunda semana. No Etna defendeu-se bem, numa etapa que não fez diferenças na frente. E no Blockhaus aguentou todos os ataques, num dia em que até, diria no início da jornada, não se estava a sentir bem.

Há outra comparação que corre pelas redes sociais e que também assenta bem ao rapaz de A-dos-Francos: há quem lhe chame a Mona Lisa do ciclismo, porque o seu ar impenetrável, indecifrável e o seu discurso sereno tornam a tarefa de o ler algo quase tão difícil quanto alombar montanha acima montado numa bicicleta. Mas há algo que ele disse no final da etapa que explica tudo e que torna João Almeida um nome para não esquecer após esta primeira semana: “Foi duro no começo da subida, estava a ter dificuldades. Não tinha pernas tão boas para hoje, por isso coloquei um ritmo inteligente”. E a expressão-chave aqui é “ritmo inteligente”.

O impenetrável João Almeida. Mona Lisa, há quem lhe chame
Stuart Franklin/Getty

Faltará ao português provavelmente aquilo que tem Richard Carapaz (Ineos): uma equipa com dois, três elementos que o reboquem montanha acima. Ainda assim, Rui Costa foi essencial numa primeira fase da subida para fazer uma primeira seleção no pelotão (que deixou Yates apeado, por exemplo) e Davide Formolo, tão criticado por ter tentado uma fuga na primeira semana quando o seu trabalho seria ser escudeiro de Almeida, redimiu-se ao ajudar o português num momento mais delicado. Mas grande parte da subida Almeida já a fez sozinho, acompanhado apenas dos seus pensamentos.

Uma semana de gestão

A segunda semana do Giro, no papel, não será uma semana de decisões, apesar do rompe-pernas que espera os ciclistas em boa parte das etapas. As atenções terão de estar nas etapas 14 e 15, no sábado e domingo, com a chegada da caravana ao norte de Itália. A tirada de domingo, entre Rivarolo Canavese e Cogne, com duas contagens de 1.ª categoria e chegada numa 2.ª categoria, poderá ser a mais perigosa. Chegar à rosa não é de descartar, mas parece até depender mais das pernas de Juan Pedro López do que exatamente daquilo que Almeida possa fazer.

E o português deverá querer gerir para entrar bem na última semana, terrível, com dias consecutivos de alta montanha. É aqui que o Giro se vai decidir e João Almeida sabe que se conseguir acompanhar os favoritos no sobe e desce poderá ter uma boa hipótese de chegar a um grande resultado no contrarrelógio que fecha o Giro, em Verona, apesar da sua curta extensão, que não beneficia o português.

Para já, os rivais parecem estar avisados: Almeida continua a manusear a estratégia, a correr como uma formiga deixando que os outros sejam cigarras.

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