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Biniam Girmay, da Eritreia para a história: é o primeiro ciclista negro a vencer uma etapa numa grande volta

Biniam Girmay, da Eritreia para a história: é o primeiro ciclista negro a vencer uma etapa numa grande volta
Tim de Waele/Getty

O ciclista de 22 anos venceu ao sprint a etapa 10 da Volta a Itália, escrevendo o seu nome no livros dos pioneiros. Ele que até preferia o futebol, mas cedo se deixou levar pela paixão do irmão mais velho e do pai

O grupo já estava curto, as contagens de quarta categoria, que pontuaram a etapa, não costumam fazer mossa, mas os sprinters não são feitos para qualquer tipo de inclinação. Biniam Girmay foi um dos que passou bem a última montanha, mas quase deitava tudo a perder ao falhar de forma quase inusitada uma curva já na aproximação a Jesi, que o deixava, de repente, mal colocado entre o pequeno grupo, nervoso, com muita gente já atrasada na classificação a tentar ir à procura da sua sorte.

Tentaram Simon Yates, Giulio Ciccone, Davide Formolo, colega de João Almeida na UAE Emirates. Nenhum com particular sucesso. A etapa seria mesmo para um dos homens mais rápidos que ainda ali resistiam. Girmay, nascido há 22 anos na Eritreia, era um deles. E na reta final atacou, parecia, demasiado cedo. Ao ciclista da Intermarché-Wanty-Gobert respondeu o comboio de alta velocidade chamado Mathieu van der Poel, o incrível neerlandês, limpador de clássicas por excelência e o primeiro camisola rosa desta Volta a Itália, depois de bater, precisamente, Girmay na etapa 1. Parecia lançado, pronto para impedir a história. Mas não, estávamos enganados: Girmay não tinha atacado demasiado cedo, aguentou a pedalada sincopada até ao fim, ao contrário de Van der Poel, que a centímetros da meta cedeu e assumiu a derrota levantando o polegar. Ao mesmo tempo que Girmay levantava os braços.

Este é o filme de um sprint para a história: ao vencer a 10.ª tirada do Giro, Biniam Girmay tornou-se no primeiro ciclista negro a ganhar uma etapa numa grande volta, ele que já este ano tinha sido o primeiro africano negro a vencer uma clássica, a Gent-Wevegen. O desejo de se tornar um pioneiro já o tinha confessado antes de se estrear numa das três principais corridas do planeta, naquelas três semanas em que o mundo está de olhos postos ali.

“Nunca vencemos numa grande volta, nunca um ciclista negro o fez. Para nós seria o melhor momento de sempre”, disse então. O “nós” aqui é importante, porque Girmay representa também aqueles que durante décadas e décadas se viram afastados do ciclismo internacional: foi apenas em 2011 que o primeiro negro correu a Volta a França, Yohann Gene, natural do território francês de Guadalupe. Em 2015, Daniel Teklehaimanot, nascido na Eritreia, tal como Girmay, brilhou ao vestir durante três dias a camisola de rei da montanha no Tour.

Mas até esta terça-feira ninguém tinha ido tão longe quanto este rapaz que, em criança, até preferia o futebol ao ciclismo.

A paixão que bateu a bola

“Quando tinha 10 ou 11 anos, preferia o futebol. O meu irmão mais velho estava no ciclismo e o meu pai calmamente acabou por me empurrar para as corridas”, confessou o ciclista numa entrevista ao site Cyclingtips, em janeiro, ainda longe de saber que 2022 seria um ano de história. Biniam até estava na equipa de futebol da escola, mas logo, logo a paixão do pai, carpinteiro de profissão, e do irmão também o iria contagiar - e ainda agora Girmay lembra como foi "cara" a primeira bicicleta que o pai lhe ofereceu, depois de começar a correr com uma emprestada pelo irmão.

Ainda miúdo, a vida de Girmay deu uma volta quando se mudou para o World Cycling Centre, na Suíça, um centro de treinos fundado pela União Ciclista Internacional em 2002 para receber atletas vindos de países com pouca tradição na modalidade ou de backgrounds desfavorecidos. Uma oportunidade que lhe permitiu competir internacionalmente nos escalões jovens. Sobre esses dias, Binian lembrou ao Cyclingtips a dificuldade em passar das “corridas africanas para a Europa”, mas sublinhou que a experiência no World Cycling Centre foi essencial para desenvolver as suas capacidades enquanto ciclista.

Com a medalha de prata na prova de estrada de sub-23 nos últimos Mundiais de ciclismo
Tim de Waele/Getty

Depois de alguns bons resultados na Volta a França do Futuro, as portas do World Tour não se abriram de imediato para o eritreu, que assinou pela Delko em 2020 para quatro anos. Um contrato longo que se tornou inesperadamente curto quando a formação francesa fechou portas no início de 2021, por dificuldades financeiras. Mas por essa altura já várias equipas importantes estavam de olho em Girmay, que nesse ano se sagrou vice-campeão mundial de estrada em sub-23. A Trek, UAE Emirates e a Quick-Step tentaram, mas o africano apostou no vínculo longo que a Intermarché-Wanty-Gobert, uma das equipas mais modestas da primeira divisão do ciclismo, lhe oferecia.

Na equipa belga não lhe têm faltado oportunidades e o eritreu tem respondido com bons resultados. E agora com a mais importante vitória do ciclismo da África subsariana. Apesar da fama repentina que 2022 lhe está a dar, Girmay continua a ser um rapaz humilde, crente, que tem na família a sua base. Apesar dos curtos 22 anos, já é casado e é pai de uma menina de um ano. Depois do triunfo na Gent-Wevegen, decidiu que era junto dos seus, na Eritreia, que iria preparar a estreia nas grandes voltas, neste Giro que já encheu de história.

Pouco depois de cortar a meta em Jesi, ainda ofegante, coração a saltar-lhe no peito, Girmay agradeceu à equipa, que se uniu à volta do seu sonho de vencer uma etapa: “Até ciclistas que têm pretensões na geral. O Domenico Pozzovivo foi fantástico no final. A 600 metros disse-me para o seguir, atacou forte e eu consegui vencer”. E na hora de dar graças neste “dia histórico”, dedicou o triunfo à família e à sua equipa. “Estou-lhes muito agradecido”, sublinhou.

Agradecido não está, seguramente, às tradições e ao protocolo. Enquanto festejava no pódio do Giro, Girmay não evitou o azar: a rolha da garrafa de espumante acertou-lhe no olho e o eritreu acabou um dia que seria de festa no hospital. Ainda não se sabe se poderá saborear o triunfo na etapa de quarta-feira, com início marcado para Santarcangelo di Romagna e final em Reggio Emilia.

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