Se for celebrar com garrafa de champanhe, cuidado com a rolha: só ao Hospital de São João chegam “dois ou três traumatismos por ano”
LUCA BETTINI
Depois de vencer a 10.ª etapa do Giro de Itália e no momento da consagração do estreante, Biniam Girmay abriu uma garrafa de Prosecco e foi atingido no olho pela rolha, um incidente que o obrigou a abandonar aquela competição. Que tipo de lesões podem acontecer nestes cenários? Quão drástico pode ser? Como é que se deve abrir uma garrafa de espumante? E, em Portugal, qual é a manobra e a bebida que levam mais pessoas às urgências?
A alegria comprimida que vive sob tensão dentro de uma garrafa de champagne é proporcional à felicidade do atleta que acaba de ser consagrado. Essas garrafas, mais perigosas quando estão quentes, permitem o lançamento da rolha a 80 km/h, o suficiente para fazer mossa. Quem está pouco habituado a ganhar ou, quem sabe, às travessuras das aberturas das garrafas cheinhas de história para gargalhar, pode estar na maior das inocências a colocar a integridade física em causa.
Foi o que aconteceu a Biniam Girmay, no Giro de Itália, acabadinho de vencer a 10.ª etapa, superando Mathieu van der Poel. O jovem ciclista da Eritreia, o primeiro africano a vencer uma corrida numa daquelas três míticas grandes voltas, abriu a descansada garrafa — não de champanhe, mas de Prosecco —, imóvel, e a rolha saiu disparada atingindo o olho esquerdo. Enquanto a fonte luminosa de orgulho esvoaçava, ele acariciava a vista com a mão contrária. Como não havia tempo para lamentações, e porque sabe-se lá quando voltaria a estar naquele céu, dispensou o Prosecco por todo o lado, esboçando um sorriso talvez angustiado.
Depois da ida para o hospital, chegou a notícia triste: Girmay teria de abandonar o Giro.
"É uma coisa que vai acontecendo", explica Manuel Falcão, professor na Faculdade de Medicina do Porto e médico no Hospital de São João. "Aqui temos dois ou três traumatismos com rolhas por ano. É algo relativamente frequente, até porque a maior parte delas não acerta no olho, acerta na cara ou na testa. Mas podem acontecer."
O desdém com que se abre uma garrafa, por exemplo, é um problema, com o polegar a querer fazer dispará-la como se fosse uma bala. Há, para o comum dos mortais e quem sabe para desportistas inexperientes (o não tão inexperiente Djokovic teve sorte uma vez, em Roma), um manual de instruções para abrir aquele sinónimo de glória ou felicidade, mas já lá vamos.
Em Portugal, conta o médico, este quase anónimo drama não acontece com o champagne, espumantes ou Prosecco, mas sim com o vinho verde, normalmente com os garrafões, que, ao serem maiores, suportam nas entranhas ainda mais pressão. Os incidentes sucedem maioritariamente na hora de arrolhar, quando o olho está bem alinhado com a rolha, do que na hora de abrir a garrafa ou garrafão. Daí costumam resultar “traumatismos que levam a hemorragias ligeiras”.
Foi o que aconteceu no caso do ciclista, de 22 anos.
“Normalmente, são hemorragias no globo ocular que acabam por absorver por elas próprias e as pessoas ficam com a visão normal”, explica Falcão. O potencial da lesão é diretamente proporcional à força do impacto: se for expelida com violência e acertar em cheio no olho, pode acontecer o olho não aguentar, isto é, se se fizer demasiada força no olho, que "é uma bolinha", rebenta. A solução passa pela remoção do globo ocular, seguida da implementação de uma prótese.
"Já houve casos dramáticos em que a rolha acertou em cheio no olho e rebentou o olho todo, nem foi possível suturar aquilo e a pessoa ficou cega. Pode mesmo acontecer", alerta.
Sobre o ciclista da Eritreia, identifica logo o primeiro erro: “Ele não tem a garrafa na mão, está no chão. Está orientada aleatoriamente”. Sobre a lesão em si, Manuel Falcão explica o mecanismo do olho: “Está dividido em duas câmaras, a câmara anterior, onde ele tinha o sangue, que é a parte que fica entre a zona transparente — a córnea — e a íris, o que dá cor ao olho; e a câmara posterior, que é o que está atrás da íris. Ele sangrou na parte anterior. Normalmente, as lesões da câmara anterior podem não ser tão graves como as da câmara posterior, que demoram mais tempo a reabsorver e podem ser mais complicadas de tratar”.
O tiro que a garrafa cospe pode ainda traduzir-se noutras lesões oculares graves, nomeadamente rutura da parede ocular, glaucoma agudo, descolamento da retina, hemorragia ocular, deslocação do cristalino e danos na órbita do olho. Por vezes, para enfrentar estas lesões que podem levar à cegueira são necessárias cirurgias urgentes, que podem desaguar na sutura da parede do olho, por exemplo.
Contactada pela Tribuna Expresso, a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia traçou as recomendações para a abertura de espumantes, champanhes, vinhos verdes ou outras bebidas com pressão:
Espumante frio e champanhe frescos antes de abrir: é mais provável que a rolha de uma garrafa quente rebente inesperadamente;
Não sacudir a garrafa: agitar aumenta a velocidade a que a rolha deixa a garrafa, aumentando assim as hipóteses de lesões oculares graves;
Aponte a garrafa para um ângulo de 45º longe de si próprio e de qualquer observador e segure a rolha com a palma da mão enquanto retira o capuz de arame da garrafa;
Coloque uma toalha sobre toda a parte superior da garrafa e agarre a rolha;
Rodar a garrafa enquanto segura a rolha num ângulo de 45º para quebrar o selo;
Contrariar a força da rolha usando pressão para baixo à medida que a rolha se liberta da garrafa.