Expresso

Será que a FIFA escolheu árbitros de futebóis mais pacatos em vez do rapazito que apita em Portugal, onde há sempre notícias destrutivas?

Será que a FIFA escolheu árbitros de futebóis mais pacatos em vez do rapazito que apita em Portugal, onde há sempre notícias destrutivas?

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Após se saber que Portugal não terá qualquer árbitro a representar o país no Mundial do Catar, este ano, Duarte Gomes escreve sobre os vários fatores que terão levado a FIFA a deixar de fora as gentes do apito nacional, incluindo a falta de profissionalização para todos ou o "ruído permanente e abusivo" que todas as semanas existe em torno do futebol - "dá demasiado nas vistas e lá fora não gostam disso"

Foi com tristeza que dei conta que a arbitragem portuguesa não estará representada no próximo Campeonato do Mundo de futebol. A ausência, embora esperada, envia mensagem forte para a estrutura e levanta dúvidas quanto às verdadeiras razões que a originaram.

O certo é que, para a FIFA, nenhum árbitro português merece marcar presença naquela que é a maior competição de seleções do planeta. Isso é algo irrebatível e factual, que devemos digerir com inteligência e saber.

A grande pergunta é... porquê? Terá sido uma questão de (in)competência, como tantos defendem? Sinceramente, acho que não.

Acompanhem-me no raciocínio:

Soares Dias pertence ao Grupo de Elite da UEFA há várias épocas. Já nesta, arbitrou uma meia-final da Liga Europa (2.ª mão) e desempenhou a função de 4.° árbitro na Final do Torneio Masculino de Futebol dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Além disso, tinha marcado presença no Mundial da Rússia (como VAR), no último Campeonato da Europa e nos Jogos Olímpicos de verão (ambos como árbitro principal).

A este nível, não se perde estatuto de um mês para outro. A menos que a sua época internacional tivesse sido um desastre completo - as nomeações mais recentes provam que não foi - a questão da perda de confiança não terá sido, seguramente, o motivo. Sendo assim, o que terá justificado a ausência? Terá sido então uma decisão meramente política?

Talvez, mas só em parte.

Que não vos soe a corporativismo (garanto-vos que não é), mas estas designações assumem importância estratégica muito relevante. A meritocracia continua a ser fator de peso, mas não mais do que a importância dada à representatividade geográfica (quotas de árbitros por continentes, como se pode constatar na listagem final) e à igualdade de género.

Artur Soares Dias apitou a 2.ª mão das meias-finais da Liga Europa esta época, entre o Glasgow Rangers e o RB Leipzig.
OLI SCARFF/Getty

A verdade é que nesta "luta" a nossa arbitragem não competia com todos os árbitros selecionáveis. Competia apenas com aqueles que seriam escolhidos no continente europeu... e esses foram onze. Só onze.

Era nessas contas que devíamos ter entrado e não entrámos, o que nos remete de novo para a mesma questão: porquê?

Apesar do pretexto poder servir para alguns, para mim parece claro que o facto de competirem domesticamente numa liga mais pequena e fora dos chamados "Big 5" não é desculpa para ninguém. É que entre os eleitos estão, por exemplo, um romeno, um esloveno, um húngaro e um polaco (além de um neerlandês e dois franceses). Todos atuarão como árbitros no Qatar e quase todos arbitram jogos em campeonatos inferiores ao nosso.

Então, se não houve demérito desportivo e se não foi a diferença competitiva que nos separa dos grandes tubarões, o que terá pesado mais nessa opção?

Eu diria que um conjunto variado de fatores, alguns estruturais.

A arbitragem portuguesa nunca conseguiu substituir nomes como Pedro Proença, Olegário Benquerença, Vítor Pereira ou Lucílio Batista (para falar dos mais recentes). Por muito que fossem odiados cá dentro, todos tiveram percursos internacionais notáveis, com presenças assíduas em finais e competições europeias e mundiais. Todos marcaram uma era, todos atingiram a elite, todos arbitraram vários anos ao mais alto nível.

Algumas opções mais ou menos recentes toldaram o nascimento de "talentos inatos" para a função, o aparecimento de jovens com qualidade potencial para chegar ao topo do mundo. Claro que há um ou dois com possibilidades de atingirem esse patamar, mas estão ainda a percorrer um caminho que está longe de chegar ao fim.

Para esta reflexão, é importante repensar-se a forma como se trabalha e gere arbitragem em Portugal. Há uma linha de atuação bem-intencionada que está desgastada, por não ser compatível com as exigências brutais do futebol moderno. Os árbitros deviam ser todos profissionais. Todos e não apenas alguns. Isso não faz qualquer sentido. Os árbitros deviam poder treinar e trabalhar todos os dias, mas todos mesmo sem exceção, para terem tempo e disponibilidade mental para pensarem no seu jogo, na sua competição, na sua preparação e recuperação.

Os árbitros também deviam ser mais protegidos, mais defendidos publicamente, para se sentirem menos condicionados e mais legitimados para decidir sem coações nem medos. Os árbitros deviam ter prazer em dirigir jogos difíceis e importantes, sem receio inconsciente das possíveis represálias que isso representa para si, para a sua carreira e até para a sua família

A arbitragem devia abrir-se mais ao exterior, porque este é um mundo de perceções. Devia prestar mais esclarecimentos, devia intervir mais vezes, devia mostrar-se menos surda, mais forte. Devia assumir, explicar e clarificar sempre que isso se justificasse. Sempre que isso pudesse ajudar a apagar incêndios. O silêncio a que se remeteu há décadas está desfasado e só atrai para si mais indicadores agastados. Quando as pessoas conhecem os processos mais sensíveis, desconfiam menos, logo fazem menos pressão. Se o árbitros se sentirem mais livres, cumprirão melhor a sua função. Estarão mais disponíveis, mais leves, mais focados, mais felizes. Isso leva-os a ter melhores desempenhos e melhores desempenhos significa mais oportunidades. Não, não é rebuscado. É mesmo verdade.

Outra situação que também deve merecer reflexão: não estará a FIFA atenta a tudo o que se passa cá dentro?

Sejamos sinceros: não saberão em Zurique o que acontece, em permanência, na nossa liga? As peripécias dentro de campo, as notícias constantes do que acontece fora dele, as relações tóxicas entre instituições relevantes, o ruído permanente e abusivo em relação a árbitros? Não terão televisão para acompanhar os inúmeros processos judiciais, as suspeitas de crime, as acusações em catadupa, as buscas, as inúmeras faltas de ética e fair-play a que se assiste, jogo após jogo, jornada após jornada?

Alguém acha mesmo que, na hora das grandes decisões, isso não pesa?

Então na (possível) dúvida entre um português e outro árbitro similar, a decisão recairá para os que vêm de culturas futebolísticas mais "pacatas" ou do rapazito que apita num campeonato onde todas as semanas há notícias cinzentas, destrutivas e impactantes na valorização do produto?

Que fique claro, não vá soar a desculpa: o principal responsável por esta decisão é o setor da arbitragem, que não conseguiu encontrar uma estratégia bem sucedida. Deve parar para refletir e perceber o que deve mudar (eu diria evoluir) para atingir o sucesso em 2026.

Depois sim, o contexto, o ambiente, a forma como o jogo é tratado por cá. Dá demasiado nas vistas e lá fora não gostam disso. Nem a presença de um dirigente português no Comité de Arbitragem da UEFA nem a excelente imagem que a FPF tem junto das instâncias internacionais foram suficientes para levantar a dúvida na hora de decidir. Algo vai mal e é preciso remendar já, para não afundar mais tarde.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt