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Pioli, o treinador com “uma dimensão humana difícil de encontrar” que recolocou o AC Milan no topo de Itália

Pioli, o treinador com “uma dimensão humana difícil de encontrar” que recolocou o AC Milan no topo de Itália
Chris Ricco/Getty
Os rossoneri são, 11 anos depois, campeões italianos. Carlos Freitas trabalhou na Fiorentina com o técnico que os liderou e lá viveram juntos a "desgraça" da morte de Davide Astori, que obrigou Pioli a ser "pai, psicólogo e irmão". O antigo dirigente de Sporting, SC Braga ou Vitória destaca o "mérito enorme" do treinador em Milão, por ter "criado um grupo muito forte", apesar de "não ter as melhores individualidades" do campeonato, e realça o contributo de Rafael Leão, a "reedição de Henry no século XXI"
Pioli, o treinador com “uma dimensão humana difícil de encontrar” que recolocou o AC Milan no topo de Itália

Pedro Barata

Jornalista

A 9 de outubro de 2019, o AC Milan anunciou que Stefano Pioli era o novo treinador da equipa italiana. Tratava-se do sétimo técnico desde que, em 2014, Max Allegri — então o último homem a levar os rossoneri ao título — abandonara o clube. Clarence Seedorf, Filippo Inzaghi, Sinisa Mihajlovic, Vincenzo Montella, Gennaro Gattuso e Marco Giampaolo iam passando pelo banco de um dos principais colossos do futebol europeu, numa lista cheia de velhas glórias, mas escassa em resultados próximos do exigido.

Quando Pioli assumiu o comando do Milan, a equipa estava na 11.ª posição da Série A, vivendo a sexta temporada seguida sem disputar a Liga dos Campeões. Os quinto, sexto, sexto, sétimo, 10.º e oitavo lugares das épocas anteriores eram o testemunho cru de uma sucessão de anos longe dos padrões do segundo clube que mais vezes se sagrou campeão europeu.

Pouco a pouco, sem grandes alaridos, mas dando passos certeiros rumo à construção de um projeto com capacidade para durar mais do que alguns meses, Pioli foi devolvendo a esperança à parte vermelha e negra de Milão. Primeiro foi o regresso à Liga dos Campeões, conseguido na temporada passada depois de sete campanhas longe da elite continental; depois foi a consolidação de uma equipa, com o fulgor da qualidade dos jovens Kalulu, Tomori, Tonali ou Rafael Leão a fazer crer que se aproximavam tempos mais felizes; e a grande consagração surgiu na última jornada da Série A, com a conquista do scudetto após 11 anos de jejum.

Maldini, atual diretor de futebol do Milan, festeja o título com Pioli
DeFodi Images/Getty

Carlos Freitas conhece bem Stefano Pioli, de 56 anos. Em 2017, depois da saída de Paulo Sousa da Fiorentina, o então diretor-desportivo dos viola identificou-o como "alguém conhecedor do campeonato italiano e com o prestígio inerente à dimensão" do clube de Florença, diz à Tribuna Expresso o agora comentador da SIC. Pioli tinha jogado na Fiorentina e "deixado uma boa imagem" e, após as "primeiras conversas", foi "relativamente fácil identificá-lo como a pessoa ideal para tomar conta do projeto técnico".

Enquanto Pioli e Freitas trabalharam juntos em Florença, forjaram uma "excelente relação", "especial e diferente", assume o então dirigente. Mas, a 4 de março de 2018, a "desgraça" irrompeu pela Fiorentina dentro.

Davide Astori, capitão de equipa, morreu enquanto dormia num hotel em Udine, na véspera de uma partida contra a Udinese. O defesa foi vítima de problemas cardíacos, deixando o calcio de luto.

Carlos Freitas opina que é "nas grandes tragédias que a dimensão humana das pessoas vem ao de cima" e, no caso de Pioli, aquele momento foi revelador: "Vi a capacidade de um líder colar um grupo destruído e uni-lo em torno de um objetivo, de uma memória. Muito mais do que um treinador, ele foi pai, psicólogo e irmão. Revelou-se um indivíduo de uma dimensão humana difícil de encontrar", descreve Freitas.

O impacto dos meses seguintes à morte de Astori foi tal que o português relata que "se constituiu uma família". "Cada um dos sucessos ou momentos difíceis por que cada pessoa daquele grupo passa são, ainda hoje, vividos e sentidos por todos os outros", indica Carlos Freitas, que sublinha reiteradamente o papel de Stefano Pioli para a construção daquela coesão grupal.

Bruno Astori, irmão de Davide, com Pioli na inauguração de um mural dedicado ao falecido capitão da Fiorentina, em maio de 2021
Paolo Lo Debole/Getty

Com um trajeto como jogador que o levou a vestir camisolas como as da Juventus ou Fiorentina e uma carreira como técnico que o fez dirigir, além da Fiorentina, a Lazio ou o Inter, Pioli chegou a um Milan que parecia sem rumo e foi dando um sentido à caminhada rossonera. Para Carlos Freitas, há um "mérito enorme" do técnico neste título, por ter conseguido "criar um grupo muito forte quando não tinha as melhores individualidades, que estariam do lado do Inter".

Ainda que realce o papel do "carácter e personalidade de Ibrahimovic para a construção do balneário", Freitas dá a linha da frente do protagonismo a Pioli, que consegue uma "merecida consagração" muito "pela capacidade de arregimentar toda a gente, desde o técnico de equipamentos até aos cozinheiros", dado que tem "um respeito inerente à pessoa e não ao papel que ocupa", o que é "pouco cultivado" no futebol. Se a vitória do Milan teve a força coletiva como pilar, o contributo de Rafael Leão foi absolutamente decisiva para o título.

O jogador português fez, no total da temporada, 14 golos (melhor marcador do Milan, a par de Olivier Giroud) e 12 assistências, vencendo o prémio de melhor futebolista da Série A 2021/22. Carlos Freitas sublinha a "segunda metade de temporada impressionante" de Leão, colocando o foco nas prestações do jovem de 22 anos na parte decisiva da campanha: nas seis últimas jornadas do campeonato, o atacante fez três golos e realizou seis assistências, incluindo o golo que abriu o marcador na penúltima jornada, contra a Atalanta, ou três assistência no jogo do título, contra o Sassuolo.

Para Carlos Freitas, Rafael Leão é "a reedição de Thierry Henry no século XXI", ainda que destaque que o português "ainda está numa curva completamente ascendente", prevendo que se torne "numa das figuras do futebol europeu nas próximas épocas". Leão tem sido apontado a outros clubes e o antigo dirigente de Sporting, SC Braga ou Vitória assume que a "cobiça é perfeitamente natural", mas entende que "seria bom" para o português "continuar na próxima época em Milão, com a mesma liderança técnica", continuando a colher os frutos do crescimento sob orientação de Pioli.

Rafael Leão e Stefano Pioli
DeFodi Images/Getty

Os tempos de planteis envelhecidos são parte do passado em Milão, onde Maignan (26 anos), Davide Calabria (25), Theo Hernández (24), Pierre Kalulu (21), Fikayo Tomori (24), Sandro Tonali (22), Franck Kessié (25), Alexis Saelemaekers (22), Brahim Díaz (22) ou Rafael Leão (22) foram importantes para Pioli.

Carlos Freitas acredita que a estratégia dos donos do Milan está em linha com "a maior parte de proprietários de emblemas com este potencial", traçando a diferença entre "custo e investimento": "Estão muito mais virados para investir, mesmo que sejam €30 ou €40 milhões, num jogador até 23 anos do que propriamente gastar €10 milhões num de 30 anos. Claro que o Milan continua a ter jogadores como Giroud, Ibrahimovic ou Kjaer, mas quase todos esses futebolistas chegaram livres. O dinheiro é investido nos jovens", num "tipo de direção desportiva cada vez mais comum", indica Freitas, que aponta que "Manchester City e PSG", por serem "clubes-Estado", se "regem por padrões diferentes".

Stefano Pioli é rotulado por Carlos Freitas como um técnico que "procura jogadores inteligentes, capazes de interpretar a ocupação dos espaços", o que exige atletas "com essa capacidade cognitiva". O antigo dirigente da Fiorentina frisa o "crescimento de Theo Hernández em termos de movimentações" como exemplo do mérito do treinador em polir o talento que lhe foi colocado à disposição.

Olhando ao futuro, "ainda que não imediatamente", Carlos Freitas suspeita que o "próximo passo" de Pioli será a seleção italiana, aproveitando o prestígio acumulado e o "conhecimento, como jogador e treinador, das realidades da Juventus, Fiorentina, Lazio, Inter e Milan". Para o agora comentador da SIC, só alguém "com muito respeito pelos outros" pode trabalhar em "clubes tão rivais entre eles".

Carlos Freitas falou com Pioli antes e depois do duelo frente ao Sassuolo, que marcou o reposicionamento do Milan no topo do calcio e consagrou o seu amigo. Alguém que "vê o futebol e a vida de maneira parecida" à do português: "Partilhamos interesses e valores. Olhamos para isto de forma descomplexada, não fazendo disto um modo de morte, mas um modo de vida. Muita gente o apelidou de normal one e eu acho que ser um cidadão completamente normal e comum não deveria ser tão anormal no futebol, mas muitas vezes parece que é".

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