Não acreditem nos jogadores do Real Madrid, eles são os Pinóquios do futebol
Shaun Botterill/Getty
Pela 14.ª vez, os adeptos do Real Madrid engoliram a canção "We Are the Champions", gritando-lhe o refrão numa final da Liga dos Campeões. Os merengues ganharam ao Liverpool por 1-0 e prevaleceram, mais uma vez, num jogo em que não tiveram mais bola, não criaram mais oportunidades, nem foram superiores no jogo jogado. Os seus jogadores acabaram por ser, de novo, dos mais mentirosos que o futebol tem e, talvez, os mais enganadores que este já teve
Desconheço onde estará Yuriy Vernydub. Há oito meses, de fato e com os derradeiros botões da camisa abertos, credencial pendurada ao pescoço, estendia as asas para boa-vindar abraços de quem trabalhava com ele no Santiago Bernabéu. Acabava de ganhar em casa do Real Madrid com o Sheriff de Tiraspol, das equipas mais desconhecidas e pequenas a alguma vez porem o pé na Liga dos Campeões, vindos de uma cidade de um país dentro de um país. Agora, estará algures na Ucrânia, quiçá em alguma trincheira, com as mãos por momentos a repousarem das armas e a segurarem um ecrã de telemóvel.
Yuriy Vernydub é ucraniano e as últimas fotos conhecidas dele já não o tinham aperaltado, mas militarmente fardado. O primeiro treinador a derrotar o Real esta época, na Liga dos Campeões, escolheu ir ser soldado para o seu país em fevereiro, dias após a Rússia o invadir e dias antes da equipa espanhola voltar a perder, só que nem por isso: de proeza em proeza quase inexplicável, o Paris Saint-Germain, o Chelsea e o Manchester City também a derrotariam, sem realmente lhe ganharem. Vernydub foi o único técnico a vencer o Real sem volta a dar.
Não se sabe se estará em Kyiv, dita como os ucranianos lhe chamam, onde Real Madrid e Liverpool colidiram em 2018. Por certo não andaria em Paris, para onde esta final da Liga dos Campeões foi transferida naqueles dias em que Vernydub foi para a guerra e a guerra mexeu com tudo. A violência do pior que há fez a UEFA tirar o jogo de São Petersburgo e colocá-lo no Stade de France, onde outro tipo de danos adiaram o consumar do reencontro destas duas equipas por mais de meia hora.
Havia enxurradas de adeptos junto às entradas do recinto, com bilhetes na mão e sem hipótese de entrarem, gás lacrimogéneo a ser usado pela polícia e dezenas de pessoas a saltarem os portões. Era uma desorganização caótica à vista, embrulhada pela UEFA na desculpa de “chegada tardia de adeptos” que escreveu nos ecrãs gigantes do estádio. Os jogadores tiveram de repetir o aquecimento dos músculos, as suas caras tão desentendidas como as das pessoas nas bancadas, incluindo a de Thiago Alcântara. Ele era a dúvida existencial antes de a final ter dúvidas de segurança.
O pequeno planeador pessoal da bola aqueceu à parte da equipa e com um preparador físico, uma lesão de há uma semana teve-o em pinças até Paris, mas o médio pôde jogar no coração de onde as coisas se decidem, nos sítios a partir dos quais o Liverpool cedo quis empurrar a final contra o Real Madrid. Os passes de Thiago faziam a equipa progredir metros e saltar linhas de adversários. Mesmo que mazelado ele era o orquestrador de jogadas, protegido pelas rápidas recuperações de bola de Fabinho e respirando no esforço de Henderson em pujar os momentos de pressão — com o alvo preferido em Toni Kroos, o melhor passador dos médios e o mais lento.
Adam Davy - PA Images
Durante a maioria da primeira parte, o Liverpool jogou como costuma, cheio de uma intenção vertical de levar o jogo para as redondezas da área dos outros, onde tem os três airados que arruinam a vida de quem os tem de defender. Ninguém entre Luis Díaz, Sadio Mané e Mohamed Salah é avançado e nenhum se deixava estar perto de Militão ou Alaba, centrais que assim não tinham a facilidade de referências para marcar. Em vez disso, ficavam com espaços por acautelar.
O mais difícil que há para se defender foi demonstrado, por várias vezes, pelo trio atacante do Liverpool. Irrequietos a tentarem tabelas, a pedirem a bola em zonas de ninguém ou a aproximarem-se uns dos outros, os dois mais antigos atazanaram as costas dos médios do Real Madrid e a frente dos defesas. Salah desviou um cruzamento rasteiro (17’) de Arnold e remataria de primeira (18’) um passe de Mané; de seguida, o senegalês rodaria para a baliza perto de muita gente, desnorteou vários adversários e também rematou (21’) à entrada da área.
Foram trabalhos forçados para Thibault Courtois. Primeiro foi à relva, depois agarrou a bola de pé e, por último, safou a ameaça mais perigosa com os dedos esticados que desviaram a tentativa de Mané rumo a um poste. Três das cinco defesas feitas pelo belga até ao intervalo impediram o consumar do perigo a que o Liverpool se submetia, porque sim, jogando assim, a equipa rockeira e de esticões calculados de Jürgen Klopp baloiçava numa corda bamba com fogo a queimá-la por baixo.
Courtois ser o guarda-redes com mais paradas feitas na Liga dos Campeões e ser obrigado a tanto, mais uma vez, em mais outro jogo, reforçava os ares de filme repetido desta final.
O Real Madrid não quis trocar socos com o Liverpool. Para quê, uma equipa só embarca nas fortalezas do adversário se segura estiver de que as suplantará com as suas, mas não, os merengues defenderam-se com as linhas recuadas e junto à área. Esperando e não provocando, aguardando ao invés de arriscar baixar os punhos da cabeça. Sofreram encolhidos sem a bola e foram mirrados com ela, quando quiseram sempre sair da sua área em passes curtos, com calma anormal e pisões na bola que cortejam o azar. Mas, como há equipas em Paris, Londres e Manchester a atestá-lo, o Real Madrid é o pinóquio.
Pressionada, a errar mais do que acerta, sem conseguir alcançar a área adversária por mais que Karim Benzema fugisse de lugares onde se espera que um avançado esteja, mas ele joga para não estar e lá aparecer quando não espera, a equipa espanhola era em tudo inferior ao Liverpool. E mentirosa, tão de nariz a crescer que, no minuto anterior ao intervalo, bastou uma matreirice de Benzema (à espera entre Van Djik e Robertson) e uma dúvida (o lateral escocês olhou para Valverde, aberto na direita) para Alaba picar um passe para o francês receber na área e uma embrulhada de ressaltos o deixar fazer golo.
Michael Regan - UEFA
O VAR anularia a maldade tão real madridesca e reverteria, portanto, os remates à baliza para zero. A insídia dos números também se compadece com a equipa que esta Champions guardará, ainda mais, como a rainha das ressuscitações milagreiras, mesmo que o clube já tivesse história de reviravoltas operadas vindas de décadas atrás. Porque nem outros 15 minutos ficaria sem bolas atiradas ao alvo e com os adeptos brancos do Stade de France silenciados, a assistirem como no teatro.
Uma saída de bola da própria área, acalmada e dependente em passes rasteiros, convidaria de novo o Liverpool a pressionar alto, mas já sem o conforto de um hábito a alimentá-lo. O Real viera para a segunda parte um quê diferente, ganhando uns metros de relvado ao sítio onde montavam o bloco para defenderem e fazendo por incomodar mais os médios ingleses, sobretudo Thiago. O Liverpool já não caía sobre os adversários com a mesma sincronia.
Vendo as nesgas de espaço abertas, Luka Modric inventou o passe que deu à luz o que a jogada queria ser, atirando a equipa para a frente e a sequência desenrolando-se naturalmente a partir daí, mais por tanto talento existir entre gente com as mesmas camisolas do que por improvisação casual: Carvajal foi ao centro do campo participar e houve a movimentação esperta de Benzema até que a bola alcançou o galopante Valverde, na direita. O uruguaio quis rematar à baliza, só podia, mas a tentativa entortou-se e foi ter com Vinícius, que atrás de Robertson esticou o pé para desviar o 1-0.
Aos 59’, o Real Madrid era como foi nesta Liga dos Campeões, a rugir jogando pior, a espernear sem ameaçar, a meter-se a ganhar sendo a equipa que menos produzira para tal. A câmara apontou para um tipo encapuçado na bancada, de olhar sereno. Era Zinedine Zidane, o treinador com quem os trintões entre eles colecionaram três troféus seguidos destes, na década passada. Feito o golo, a postura de quem hoje os acompanha era a de sempre: uma sobrancelha ao alto, mãos na cintura, gravata e colete, Carlo Ancelotti estava tranquilo. Antes do jogo, no relvado, disseram como os jogadores tinham feito uma “siesta” de uma hora e “os mais velhos manejavam bem” estas finais.
O italiano é treinador, mas ser-lhes-á outras coisas. Às vezes um colega, outras um orientador, ele próprio já admitiu que tenta só orientá-los e lhes pergunta como acham que devem jogar. Numa equipa mentirosa, Ancelotti é o Gepeto e a forma como o Real Madrid perdurou no resto do tempo que havia no Stade de France faz-nos, novamente, duvidar do que significará a lógica no dicionário do futebol.
E atestar o quão aleatório e imprevisível também é.
Chris Brunskill/Fantasista
Chris Brunskill/Fantasista
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Socado em cheio nas beiças pelo golpe que mais terá sido visualizado, com receio, pelos jogadores, o Liverpool atirou-se para cima dos espanhóis. Encostou-os à área mais ainda do que eles próprios recuaram, então já pouco se importavam na impressão dada pela estratégia. Agora era resistir e aguentar, confiando mais ainda na inspiração que mora em cada um dos futebolistas do Real Madrid.
E o Liverpool atacou com as suas armas, que são muitas e nenhuma estaria mais inflamada do que Salah, único falador em vingança antes da final. O egípcio saiu cedo do confronto de há quatro anos e cada jogada em que participou parecia um grito contra a pancada de Sergio Ramos, em Kyiv, que lhe machucou o ombro. Além do remate atabalhoado de Keita (81’) ou a tentativa de Diogo Jota (80’), o encaracolado atacante rematou à distância (64’), na área a acorrer a um cruzamento (68’) e ainda mais dentro dela a receber a bola com classe veloz para logo a disparar (82’), quase à queima-roupa. Nessa última vez, deixou os joelhos tombarem na relva, todo o corpo vestido de desespero.
Porque, em cada tentativa, houve a perícia da envergadura de Courtois a barrar a bola, o belga feito uma das melhores existências de um guarda-redes em finais da Liga dos Campeões e, certamente, o mais decisivo de todos os que valeram orelhudas ao Real Madrid este século. Parecia haver um espírito a encarnar em direto no gigante de cara estreita e nariz comprido, a pontuar na face. É condigno, também ele é um pinóquio do futebol.
As suas paradas confirmariam o desterro do Liverpool e a bonança do Real Madrid, deste Real, que revirou tantas vezes a própria sina e, desde a fase de grupos, teve menos minutos a ser realmente melhor do que um adversário do que o contrário, mas, ao apito-mestre, não foram os seus jogadores a caírem de costas no relvado, derrotados por um destino inexplicável. Os de branco correrem desenfreados pelo campo, Benzema o mais calmo de início, apenas a abrir os braços em voilá, e Kroos a deitar-se em cima de Modric para se enrolarem num abraço. Todos têm agora cinco Ligas dos Campeões ganhas em nove anos.
Ainda bem que eu a escrever e o leitor a ler já não implica papel e tinta, esgotaríamos ambas sem proveito se não nos quiséssemos ficar pelo mérito do Real Madrid e quiséssemos esmiuçá-lo. O que aconteceu entre uns meses de 2021 e 2022 não é sorte, nem destino, também não será coisa de milagres, superstições ou planetas alinhados. Esta Liga dos Campeões do Real, a 14.ª para o clube, virá e viverá algures do grito espantoso vindo das almas dos adeptos merengues que estiveram no Stade de Franco quando entoou o refrão da “We Are the Champions”, canção predileta dos momentos de levantamento de taças.
Quando Marcelo a ergueu, liderando a equipa e com Carlo Ancelotti entre eles, como um deles, eles absorveram a canção das colunas do estádio. Foi estrondoso, a vibração até se expandiu pela televisão. Essa energia de quem apoia e vai recebendo as maiores conquistas em troca é mais explicável do que as tantas vezes que a equipa do Real Madrid fez dos jogos meros mentirosos, ganhando-os quando os adversários os tinham quase vergados na aparente inferioridade.
Deixemo-nos de esgotar o scroll de uma crónica e fiquemo-nos pelo que o Real Madrid e os seus lendários jogadores são: uns mentirosos do futebol, porque nunca houve equipa a elevar-se tão acima do que, normalmente, faz os campeões. Eles fizeram-se com muito mais do que isso e algum dia descobriremos do quê.