O pé não lhe dá tréguas, mas Nadal está em paz com o que tem. Só não sabe até quando o terá
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A coxear, com o pé esquerdo meio fora do sapato e com dores desde que saiu da cama de manhã. Assim se apresentou Rafael Nadal no dia seguinte ao 14.º título em Roland-Garros, quando deu algumas entrevistas que começaram por nem o questionar sobre ténis, mas sim acerca do que mais tem condicionado a vida do espanhol: a dor
Todo o Grand Slam tem o seu lugar predileto para engrandecer quem se agiganta nos seus courts. Por estarem montados em cidades cosmopolitas onde multidões acorrem, vindas de fora, para lhes medir a pulsação, cada uma das metrópoles dispõem de sítios emblemáticos onde uma foto equivale a um postal e, em Paris, a Ponte Alexandre III é um desses pins colocados no mapa: construída em arco sobre o rio Sena, tem no enquadramento a Torre Eiffel e até a Wikipédia a descreve como uma das “mais ornamentadas e extravagantes” da capital francesa. Foi lá que Rafael Nadal teve de ir.
O espanhol vestiu-se à civil para levar o troféu de Roland-Garros a passear nas ruas parisienses, na segunda-feira, ordenado pela tradição, comum a todos os majors, de fotografar os vencedores nesse tal lugar mais simbólico que identifiquem na ‘sua’ cidade. O protocolo é-lhe por demais familiar: Nadal ganhou pela 14.ª vez o torneio dos torneios da terra batida, superfície com a qual se funde desde 2005, quando o conquistou pela primeira vez, aos 19 anos. E a crescente perda capilar desde então não é o único sinal de que o tempo esquece ninguém, muito menos quem o desafia.
Na ressaca da façanha que o próprio acha que muito dificilmente será replicada por alguém, Rafa chegou à ponte de Paris a coxear.
Impecavelmente penteado, vestido com calças de ganga e um polo branco, o espanhol posou com o troféu a que conhece as curvas de cor, sentado no parapeito da travessia apedrada do rio sem um sorriso de maior, apenas o suficiente para cumprir a formalidade. Depois, de novo sentado e de perna cruzada num salão com ares de Versalles, abriu os pensamentos para algumas entrevistas feitas por quem, como a toda a gente, já faltarão palavras para versar sobre a magnitude do legado que Rafael Nadal está a deixar no ténis.
Portanto, questionaram-no sobre a dor.
Não foi este Roland-Garros a ser um confessionário para Nadal, ele já admitira, semanas antes, que entre ter uma lesão passageira e estar lesionado sem termo há uma diferença e é nela que o espanhol vive, por culpa do pé esquerdo onde desde os seus 18 anos mora a Síndrome de Müller-Weiss, que lhe degenera o osso escafóide tarsiano (ou tarsiano, se preferirem). Em Roma, vimo-lo a coxear, visão que não se repetiu em Paris devido à toma diária de anti-inflamatórios e até de injeções anestésicas para enganarem o cérebro do tenista mais conquistador de sempre no pó de tijolo.
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As primeiras perguntas feitas pelo “El Mundo” e o “El País” foram sobre a dor, ou como se sentia. Ao primeiro respondeu que “fisicamente” está “bem”, ao segundo disse que “a verdade é que” estava “muito bem”, mas a ambos ressalvando que contou “as últimas duas semanas e meia” a tomar os ditos medicamentos “a cada seis horas”. Na noite de domingo para segunda-feira, ganha a final, não os tomou “porque não pode seguir assim” e acordaria com “o pé a doer”.
Antes do ténis, partilhou-se conversa sobre dor e como um tenista, aos 36 anos, que se espera ver a competir por tudo, lida a diário com uma parte do corpo a gritar-lhe “como se estivessem a picar com uma agulha” para que páre. Nadal explicou ao “El País” que as injeções eram feitas 20 minutos antes dos jogos e “à distância dos nervos sensitivos” para que não lhe desliguem a sensação de ter ali um pé. “Se te adormecem o motor, não o podes mexer. Por exemplo, na final, também me adormeceram os dedos e isso era pior. Pelo menos tens de ter o controlo do tornozelo, [tenho] menos, mas de alguma maneira ainda controlas o necessário para continuares a competir”, explicou, sobre os truques para colocar um penso rápido no que o aflige.
Nadal já não se importa de ir para court com “pouca sensibilidade”, diz que “isso [lhe] dá igual” porque passou de “ir coxo” para jogo a “jogar sem dor”. O tenista habituou-se a esta solução, já não lhe dá “qualquer medo” e tão pouco se mostrou otimista por aí além — “vamos ver o que acontece” — quanto radiofrequência pulsátil a que se submeterá para tentar “manter de forma permanente” a “sensação” de jogar com o pé adormecido.
Assumindo-se como um tipo “bastante realista”, sem ser “muito dramático, nem muito impulsivo”, Rafa vai esperar para ver “o que pode fazer, ou não”. Durante as entrevistas, o tenista foi filmado com o pé meio de fora do sapato, como que a dar-lhe algum descanso da compressão, e garantiu que “se for como nos últimos meses”, em que foi jogando sem praticamente treinar pelo meio, “não se pode continuar”. Nadal sabe que “é difícil entender de fora” e daí “custar tanto falar” sobre o problema, lê-se na conversa com o “El País”.
As perguntas e respostas prosseguiram e tocariam em pontos mais tenísticos. O espanhol confidenciou como levou para Roland-Garros o modelo antigo das raquetes e mudou “o peso e a corda” do utensílio do qual faz vida; entre os três da vida lendária, reconheceu que Novak Djokovic “é quem tem a situação mais clara” por “ter o nível que tem e não sofrer de problemas físicos”; disse ser “uma loucura” pensar que este ano (o primeiro em que juntou o Open da Austrália a Roland-Garros) poderia conquistar os quatro Grand Slams — “nem o imagino, mais do que ganhar, assinaria [no papel] para poder jogar os quatro”.
Admitiu, também, que “parece impossível” vir alguém que vença 14 vezes em Paris como ele, que apesar de tudo não se vê como um “super eleito”. Já quanto aos 22 majors, nem por isso. “Se eu o fiz, alguém pode fazê-lo também. A minha felicidade não vai mudar, de todo, nem 1%”, desabafou à "CNN".
Tim Clayton - Corbis
Por outras palavras, o canhoto que os deuses parecem ter esculpido para dominar as condicionantes impostas pela terra batida numa bola de ténis considera-se “um tipo normal”, como outro qualquer.
E como uma pessoa comum, Rafael Nadal deliberou como se nada fosse sobre a condição humana que tem, a que o tem agarrado à dor, a que o forçou a forjar uma forma de viver na sua companhia. O resultado é alguém resignado a aceitar o que sabe que lhe o corpo lhe dará a curto-prazo: “O tema não é que hoje tenha dor. Há duas semanas, tinha muito claro que estaria mal quando o torneio acabasse”. Um dos maiores tenistas de história joga sabendo que quando o jogo estiver feito, vai sofrer. “Isso tenho-o assumido, é muito fácil”, garante, banalizando a inevitabilidade.
O problema é “o dia a dia”, explicou, chegando nós ao Nadal meio que paradoxal: está em paz com o facto de ter o pé esquerdo condenado à dor se quiser jogar ténis, mas é um confesso recusador de aceitar que não pode treinar por causa dessa crónica maleita. “O que não posso assumir é que não possa treinar com regularidade por todos os dias acordar coxo”, resume, ao dizer, poucas respostas depois, que “é isso que torna” a questão “mais difícil de assimilar”.
Não são apenas as bolas que, saídas da raquete de Rafael Nadal, rodopiam freneticamente para longe dele e dos adversários. Figurativa e realisticamente, e apesar desta épica 14.ª aventura em Roland-Garros, também o espanhol parece estar a fugir do ténis, empurrado pelo próprio corpo: “O difícil é ter a capacidade de colocar tudo isto de lado e centrar-me no ténis para jogar ao nível em que joguei”.