Football Leaks

Football Leaks. Michael Wulzinger e Rafael Buschmann: “Se fosse na Alemanha, Cristiano Ronaldo provavelmente estaria preso”

Football Leaks. Michael Wulzinger e Rafael Buschmann: “Se fosse na Alemanha, Cristiano Ronaldo provavelmente estaria preso”
DER SPIEGEL

Jornalistas da “Der Spiegel” e autores do livro “Football Leaks”. Ganharam o prémio de Jornalistas Económicos do Ano na Alemanha, com esta investigação a partir dos ficheiros enviados pelo principal denunciante do escândalo. “John”, sabe-se agora, é Rui Pinto, português emigrado na Hungria, a tentar evitar a extradição para Portugal

O Football Leaks (FL) envolve milhões de documentos. Como é que se trabalha uma quantidade tão grande de dados?
Michael Wulzinger (MW):
Temos uma equipa de cerca de dez colegas que trabalham juntos há quase três anos neste projeto: investigadores, repórteres, jornalistas de dados, verificadores de factos, advogados.
Rafael Buschmann (RB): O apoio mais importante em termos técnicos foi o nosso software Intella, que a “Der Spiegel” comprou no início do projeto. Foi desenvolvido para analistas e investigadores. O software consegue filtrar, procurar e analisar milhões de documentos sem se perder nesta selva de dados.

É uma investigação que vos tem dado várias ‘dores de cabeça’. O que vos move?
RB:
Houve alguma dor de cabeça, sim, como acontece com qualquer investigação complexa. Mas não foi como outra qualquer. Em primeiro lugar, há um sentimento de gratidão: o FL é um projeto muito emocionante e não teríamos conseguido lidar com todas estas histórias sem uma fonte corajosa como o nosso whistleblower [denunciante] “John”, que se identificou como sendo Rui Pinto.

Como o convenceram a partilhar os documentos convosco?
RB:
Explicámos-lhe que, como jornalistas, poderíamos ir mais longe do que ele e os seus ajudantes com a página anónima do FL, que no início publicou apenas contratos e documentos originais. O nosso argumento foi: Nós conseguimos verificar, checar e pesquisar esses dados, confrontar terceiros e depois, publicando artigos, descrever todo o contexto dos documentos, e não apenas o conteúdo.
MW: Outro ponto importante foi a cooperação com o European Investigative Collaborations [EIC, consórcio de que o Expresso faz parte]. Dissemos ao “John” que, partilhando os documentos dele com os nossos parceiros, podíamos provocar um impacto global. Esta estratégia de pesquisa e publicação convenceu-o.

Foi fácil acreditar nele?
RB:
O Rui Pinto vê-se como um whistleblower, como alguém que correu riscos significativos para mostrar ao mundo o lado sombrio e negro do negócio do futebol. Para nós é uma fonte muito fiável, porque podemos confiar nos dados que tem. Todos os documentos que verificámos provaram ser verdadeiros.
MW: Os documentos mostram casos de evasão fiscal, fraude, lavagem de dinheiro. Além disso, dão pistas para irregularidades como enriquecimento ilícito ou acordos ilegais com jogadores menores. As pessoas envolvidas nesses negócios são os verdadeiros conspiradores e manipuladores, não o Rui Pinto. Ele é o homem que ajuda a tornar isso público.

Ainda assim, dizem que a relação com ele foi difícil. Que tipo de concessões tiveram de fazer?
RB:
É óbvio que alguém que tem acesso e possui material explosivo vive sob enorme pressão. O rapaz tem altos e baixos emocionais, e temos que lidar com isso. Também com o forte temperamento dele. Pinto é movido pelo desejo de lutar contra a corrupção e o negócio obscuro dos super-ricos. Foi necessário encontrar algumas regras para o nosso relacionamento.
MW: Mas ele nunca impôs nenhuma condição sobre o que podíamos ou não publicar. E é claro que não aceitaríamos nenhuma interferência. Nunca lhe fizemos nenhuma concessão. Podemos trabalhar qualquer documento enviado por ele e, se na nossa opinião, depois da pesquisa, considerarmos que o conteúdo é relevante, somos livres de publicá-lo.

Descrevem-no também como um ‘rebelde’. Houve algum ponto de quase rutura?
RB:
Desde o início das nossas reuniões, dissemos que lhe caberia a ele definir, a qualquer momento, um possível fim do seu papel como fonte. Ele podia ter decidido parar o contacto connosco a qualquer altura, sem ressentimentos. Mas nunca o fez. Continuou a entregar-nos dados porque viu que estamos a trabalhar o material com muito cuidado e a sério. Obviamente, tivemos algumas discussões, mas nada que pudesse prejudicar a nossa relação profissional. Pinto é um personagem muito leal. Ele só quer que investiguemos os dados com paixão e sem medo.

Ele tem sido ameaçado e está preocupado com a sua segurança. E vocês?
MW:
Sabemos que estamos há meses a ser seguidos por agências de inteligência privadas e detetives. Não é a situação mais confortável para um jornalista.
RB: Mas também sabemos que pessoas e empresas futebolísticas emitiram mandados para essas investigações. Descobrimos isso nos nossos dados. É uma forma de abrirmos os olhos e mantermos isso em mente.

Uma das muitas revelações que fizeram foi o acordo secreto entre 11 clubes para criar uma Superliga Europeia. Há mais segredos com este impacto por desvendar?
RB:
Infelizmente, não podemos falar da investigação que ainda não foi publicada. Mas pode ter a certeza que vêm aí revelações importantes.

Há grandes clubes europeus envolvidos, e transferências entre eles. Qual é o papel de um superagente como Jorge Mendes?
RB:
Jorge Mendes é o agente de jogadores como — só para nomear alguns — Cristiano Ronaldo, Radamel Falcao, Ricardo Carvalho, Fábio Coentrão, Pepe ou do treinador José Mourinho, que foram todos envolvidos em sérios problemas jurídicos através das revelações do FL. Alguns deles já foram condenados por fraude fiscal, outros ainda estão a ser investigados.
MW: Mendes e a empresa dele, a Gestifute, estão também sob observação das autoridades fiscais europeias na sequência das nossas publicações. O próprio Mendes teve de comparecer no tribunal para ser ouvido. Ele sempre negou estar envolvido nos assuntos e nos esquemas tributários dos clientes, e até agora não foi condenado. Homem de sorte.

E Cristiano Ronaldo? O que mais vos impressionou na conduta dele fora de campo?
RB:
Ronaldo é um jogador fantástico há uma década, não há dúvidas quanto a isso. Mas o comportamento dele fora de campo é mais do que questionável. As publicações do FL revelam que recebeu mais de 150 milhões de euros através de uma empresa chamada Tollin, nas Ilhas Virgens Britânicas, da qual era o principal beneficiário. Era este o seu segredo e foi isso que ele não declarou às autoridades fiscais espanholas. Agora foi condenado por um tribunal em Madrid por evasão fiscal, e teve de pagar quase 20 milhões de euros. Pode acender uma velinha e agradecer ao Senhor Todo-Poderoso por esta sentença tão leve. Na Alemanha, provavelmente iria diretamente para a cadeia. Lembre-se, Uli Hoeneß, presidente do FC Bayern de Munique, foi condenado a três anos e seis meses de prisão por evasão fiscal. E vários especialistas consideraram a sentença muito branda.
MW: Outro caso perturbador que descobrimos nos dados do FL foram as acusações de uma mulher norte-americana, que diz ter sido violada por Ronaldo no verão de 2009. Ele nega firmemente, fala de relações sexuais consentidas. É um caso criminal que agora tem de ser resolvido pelas autoridades dos Estados Unidos. Depois das nossas publicações em setembro de 2018, o Departamento da Polícia Metropolitana de Las Vegas reabriu as investigações, e é um caso em andamento.

Estão já a planear o segundo livro. Vai incluir informação sobre a revelação da identidade de Rui Pinto e a respetiva prisão?
MW:
Estamos a trabalhar nisso agora e, claro, vamos cobrir tudo o que está a acontecer com o Rui Pinto. Ele nega as acusações das autoridades portuguesas, de ser um hacker e de ter tentado chantagear a Doyen [agência desportiva]. Ele tem medo de não conseguir um julgamento justo em Portugal e, juntamente com os seus advogados, está a lutar contra a extradição.
RB: No verão de 2018, alguns meses antes da prisão, o Rui Pinto já havia abordado as autoridades fiscais francesas para cooperar como whistleblower. Está preparado para enviar todos os documentos às autoridades francesas, que os partilhariam através da Eurojust [agência judicial europeia] com outras entidades europeias. Juntos querem combater o crime financeiro na União Europeia, com base nos dados do FL. O caso de Rui Pinto é politicamente explosivo. Será que vai conseguir evitar a extradição e poder apoiar as autoridades europeias a detetar casos de crimes graves em vários países, Portugal incluído?

Tem havido pressões no sentido de controlar o que vão publicar no segundo livro?
MW:
Não. Sentimo-nos totalmente livres para publicar o que quisermos.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt