Football Leaks

Rui Pinto: “Enquanto Portugal pedia o alargamento do meu mandado de detenção, um ministro da Hungria recebia bilhetes VIP do Benfica”

Rui Pinto enfrenta em julgamento uma acusação com 90 crimes.
Rui Pinto enfrenta em julgamento uma acusação com 90 crimes.
Sonja Och / Der Spiegel
O autor de Football Leaks falou à revista Der Spiegel sobre o fim da prisão preventiva, o impacto do Football Leaks, a Doyen e o Benfica. A revista alemã partilhou com o Expresso a segunda parte da entrevista a Rui Pinto, cujo julgamento arranca na próxima sexta-feira

Rafael Buschmann, Christoph Winterbach e Nicola Naber (Der Spiegel), Tradução: Expresso

A revista alemã Der Spiegel entrevistou Rui Pinto a 21 e 22 de agosto, em Lisboa, naquela que é a primeira vez que o autor de Football Leaks fala publicamente depois de ter terminado a prisão preventiva. O Expresso, parceiro da Spiegel no consórcio EIC - European Investigative Collaborations, publica a segunda parte dessa entrevista, na qual Rui Pinto fala não apenas do julgamento, mas também do impacto das suas revelações, quer em Football Leaks, quer em Luanda Leaks.

Rui, o julgamento arrancará nos próximos dias. Apenas deixou a prisão domiciliária há um mês. Qual foi a primeira coisa que fez?
A primeira coisa que fiz foi telefonar à minha família e à minha namorada, para lhes dar a notícia de que era um homem livre.

Qual foi o primeiro site que abriu depois de ter sido proibido de aceder à Internet durante meses?
Quando pude finalmente aceder à Internet comecei por abrir a minha página no Twitter.

Agora está a preparar-se para julgamento. Qual é a sua posição sobre a empresa de marketing desportivo Doyen, que é queixosa no processo?
Qual das Doyen? Doyen Group, Doyen Capital, Doyen Sports? Até hoje ainda não sei de que Doyen estamos a falar. Porque a queixa foi de ter havido acesso ilegal ao seu sistema corporativo em Londres, e referem o Doyen Group. Mas o que é o Doyen Group? Qual a ligação entre as empresas? Não há ligação. E o autor da queixa, a vítima, é a Doyen Sports. Mas esta empresa não tem ligação com a Doyen Capital, de Londres.

Os procuradores afirmam que a Doyen Sports, embora registada em Malta, tinha a sua infraestrutura tecnológica em Londres. Foi onde o alegado ataque pirata ocorreu. Porque é que não pode a Doyen Sports atuar como queixosa?
De acordo com os documentos disponíveis no processo, o dono do sistema informático era a Doyen Capital, não há dúvida. Além disso, a Doyen Sports não tinha presença física em Londres. E nem sequer tinha uma relação empresarial com a entidade afetada pelos alegados ciberataques referidos na acusação. Fica claro desde o início que houve uma tentativa forçada de legitimar a intervenção da Doyen Sports no processo.

Foi o Rui que entrou ilegalmente nos servidores da Doyen em Londres?
Isto será também discutido em tribunal. Mantenho a minha posição: não me considero um hacker. O Football Leaks é um coletivo, por isso tenho de ter cuidado com o que possa dizer.

Mantém que um hacker pode ser um whistleblower (denunciante)?
Absolutamente. Alguém que procura, recebe e analisa informação relativa a crimes relevantes como corrupção e fraude fiscal e decide partilhá-la com media internacionais ou diretamente com as autoridades deve ser considerado um whistleblower. Tomemos os Panama Papers como exemplo. Hoje a maior parte das pessoas já se esqueceu de que foi um ato de hacking (pirataria informática).

Rui Pinto foi entrevistado pela Der Spiegel em Lisboa.
Sonja Och / Der Spiegel

Como acompanhou as reações quando veio a público que era o denunciante por trás do Luanda Leaks?
Ainda estava em prisão preventiva. As pessoas diziam-me que era um homem de coragem e que devia ter cuidado porque Isabel dos Santos é muito poderosa e procura a vingança. Os guardas prisionais também disseram que fiz o que estava certo e que era o único com coragem para finalmente expor pessoas desse tipo.

Acha que algo mudou na opinião pública em relação a si com Luanda Leaks?
Houve uma mudança na imprensa relativamente a mim: alguns jornalistas que me chamavam sempre pirata ou hacker ou espião informático agora chamam-me whistleblower. Antes todos tratavam o Football Leaks como uma guerra tonta entre clubes de futebol. Mas quando apareceu o Luanda Leaks, todos perceberam que havia muito mais que isso. Até os procuradores acabaram por perceber que isto era maior do que o que esperavam. Este projeto acabou por me ajudar a finalmente sair da prisão.

É mais compensador libertar esta informação [Luanda Leaks] do que atacar o mundo do futebol?
Por vezes fico um pouco triste porque o Football Leaks não atingiu tudo o que esperava no início. Para os denunciantes, o mundo do futebol não é o sítio mais fácil para entrar. Creio que o Football Leaks foi uma das mais perigosas fugas de informação. Os denunciantes do futebol correm muito mais perigo do que os de outros negócios, como os dos Panama Papers ou dos LuxLeaks.

Por que é que pensa isso?
As empresas de fachada e os evasores fiscais têm consideravelmente menos adeptos do que os clubes de futebol. O futebol vive do entusiasmo e das emoções dos adeptos. Se descobrirmos alguma falcatrua nesta área ganhamos logo um monte de inimigos.

Já foi acusado de ter sido o responsável pela divulgação de documentos do Benfica [Mercado de Benfica], que é provavelmente o mais influente clube em Portugal. O Benfica é agora crítico da sua colaboração com as autoridades. O que pensa disso?
A colaboração foi feita de forma totalmente legal. Se não estão contentes com isso é problema deles. Pensam que dominam o país. Mas acabou, porque as pessoas começam a abrir os olhos.

O que quer dizer quando afirma que o Benfica domina o país?
Este clube é como um polvo de influência. Há um pormenor muito importante sobre o qual quero que o público pense. Ao mesmo tempo que as autoridades portuguesas enviavam um pedido às autoridades húngaras para alargar o meu mandado de detenção europeu, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria recebeu dois bilhetes VIP para jogos do Benfica e teve encontros no estádio do Benfica. Isto é o Benfica.

Não terá sido uma mera coincidência?
Na minha opinião não. Depois da publicação de e-mails do Benfica, todos começaram a perceber que o modus operandi dos seus dirigentes era alargar a influência, muitas vezes por cortesia, para alcançar os seus objetivos. O Benfica foi uma das partes mais interessadas no alargamento do mandado de detenção europeu. A Péter Szijjártó [ministro dos Negócios Estrangeiros] faltou o senso comum, e como diz o ditado “à mulher de César não basta ser, é preciso parecer”. Ficará sempre uma nuvem de suspeição sobre o alargamento do mandado europeu de detenção.

As suas denúncias abalaram a confiança em boa parte dos organismos do futebol e nos maiores clubes. Essa desconfiança será reparável?
Como podemos acreditar que as instituições do futebol vão de facto trabalhar no melhor interesse do desporto? Tenho a sensação de que a UEFA sabotou as investigações contra o Paris Saint-Germain sobre o fair play financeiro. Os clubes poderosos podem escapar de tudo se tiverem a forma certa de influenciar. O futebol claramente perde a sua identidade e as suas características se os bilionários injetarem dinheiro em alguns clubes e com isso conseguirem que vençam as competições internacionais. O futebol não devia ser isto.

Não tem nenhuma esperança?
Tenho esperança porque há alguns resultados. Recentemente, o procurador-geral suíço abandonou o cargo por causa dos encontros com Gianni Infantino. Há uns anos ninguém pensava que fosse possível. Mas vejam o comunicado da FIFA: o comité de ética da FIFA declarou que a FIFA não cometeu nenhum crime. É ridículo.

Qual é a sua perspetiva em relação ao julgamento?
Será algo do tipo David contra Golias, porque seremos eu e os meus advogados contra os interesses poderosos e obscuros da sociedade portuguesa. Alguns dos advogados do outro lado representam noutros processos pessoas suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro, pelo que me vêem naturalmente como uma ameaça.

O seu advogado William Bourdon disse que se irá declarar inocente perante a juíza. É verdade?
Espero ser absolvido, porque sou um denunciante e atuei de boa fé. Atuei no interesse público, para mostrar o que estava errado, não apenas no futebol mas noutras áreas também.

Parece ser movido pela vontade de revelar crimes e injustiças. Imagina-se a trabalhar para as autoridades portuguesas depois de o julgamento terminar?
Nunca pensei nisso. Primeiro quero resolver a minha situação legal e ser absolvido. Mas em abstracto posso dizer que quero que o meu trabalho sirva um propósito. Quero uma mudança real.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt