“Menina, dê-me o vosso nib para fazer uma transferência de cinco mil euros”: os bastidores do regresso da F1 a Portugal
Fernando Alonso, na altura na Renault, a testar no Autódromo Internacional do Algarve no inverno de 2009, antes do arranque da temporada
Ker Robertson/Getty
O objetivo sempre foi ‘roubar’ os testes de inverno a Barcelona, mas quando os cancelamentos de provas devido à covid-19 começaram, o Autódromo do Algarve estava preparado. E, 24 anos depois, Portugal vai voltar a ter F1. Esta é a história de como lá chegámos, um caminho que não foi de dias, nem meses, mas sim de anos
Horas depois das primeiras declarações públicas de Ross Brawn, diretor desportivo da F1, a colocar Portimão numa shortlist de circuitos que poderiam fazer parte do calendário revisto de 2020, o Autódromo Internacional do Algarve (AIA) recebeu uma chamada do Porto. Atendeu uma das funcionárias do circuito. “Menina, dê-me o vosso NIB para eu fazer uma transferência de cinco mil euros e depois vocês logo me dizem a quantos bilhetes isso dá direito.” A história é-nos contada por Paulo Pinheiro, CEO da pista algarvia, em jeito de curiosidade, mas também para mostrar algo que não mudou nos 24 anos em que a principal disciplina do desporto automóvel deixou de visitar o nosso país: os portugueses continuam apaixonados pela F1.
A hipótese é muito forte. Zak Brown, diretor da McLaren, já disse para quem o quisesse ouvir que os “pilotos iriam adorar correr em Portimão”. Esteban Ocon, piloto francês da Renault, admitiu andar a treinar o traçado algarvio no simulador. A decisão deverá conhecer-se nos próximos dias e, a chegarem boas notícias, o GP de Portugal não será apenas fruto da ocasião — e por ocasião leia-se a volta que o calendário de 2020 da F1 levou às custas da pandemia de covid-19 —, mas sim um trabalho de bastidores que não tem semanas, nem meses, mas sim anos.
“Há dois anos iniciámos contactos com a Liberty [proprietária do Formula One Group] no sentido de propormos a nossa pista para testes e para o caso de as corridas começarem a ser feitas em moldes diferentes”, explica-nos Paulo Pinheiro. Os tais moldes da F1 atual explicam-se com dinheiro, muito dinheiro, e estão bem longe da realidade de um país como Portugal — receber uma corrida custa, por estes dias, entre “30 a 40 milhões de dólares”. E por isso a conversa com a Liberty ficou por ali. Mas os alicerces continuaram a ser construídos: no início do ano passado, o AIA definiu como objetivo a homologação da pista para grau 1, o único que permite receber corridas de F1, algo que aconteceu em finais de março. A meta passou a ser então preparar uma candidatura aos testes oficiais de inverno da F1, que nos últimos anos se têm disputado em Barcelona.
Mas entretanto aconteceu a pandemia. O GP da China já tinha sido adiado em fevereiro e durante os meses de março e abril outras provas foram caindo, incluindo o mítico GP do Mónaco. E Portimão começou a mexer-se. Logo em fevereiro, Eduardo Freitas, da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (e com larga experiência na direção de provas da FIA), ligou a Paulo Pinheiro. “Disse-me: ‘Olha, se calhar não era mal pensado manifestarmos a disponibilidade do circuito para haver corrida.’ E foi o que nós fizemos. Como já tínhamos contactos com a Liberty, desde o AIA fizemo-lo de forma mais direta com eles e o presidente da FPAK, Ni Amorim, fez a mesma coisa com a FIA. Foram dois caminhos paralelos que fomos fazendo”, explica o administrador do circuito de Portimão.
“Fomos insistindo cada vez mais, esgrimimos os nossos argumentos e em inícios de maio começámos em conversações de maneira mais objetiva.” E desde aí a relação com o Formula One Group tem sido diária. “São dias de reuniões contínuas, seis, sete, oito reuniões, pelo Teams, Zoom, Skype. Há muitos aspetos a discutir, mas faz parte de um processo em que tentamos garantir uma corrida com a importância da F1.”
Não há euros, mas há tudo o resto
Trazer a F1 a Portugal, para mais sem ter de pagar o habitual fee de dezenas de milhões de euros, seria ter no país “o maior evento desportivo desde o Euro 2004”, diz Paulo Pinheiro. Mesmo sem público, o impacto económico de um fim de semana de corridas poderia chegar a qualquer coisa como €50 milhões. E esta é a previsão menos otimista.
Mas há outras pistas na corrida a um lugar no calendário, como Mugello, Imola (ambas em Itália) e Hockenheim, na Alemanha. Desses lados parece haver a disponibilidade para avançar com algum dinheiro para garantir a prova, coisa que em Portugal não há. “Não é pelo lado financeiro que vamos conseguir ganhar esta batalha”, sublinha o administrador. “Temos de ir pelos nossos argumentos, a nossa capacidade hoteleira, capacidade organizativa, a nossa gastronomia, a maneira como reagimos à pandemia numa fase mais crítica. E o nosso clima, que em setembro e outubro é fantástico. O mesmo já não acontece em Itália e na Alemanha. Vamos esperar que sejam argumentos suficientes para ultrapassar a questão do fee.”
Público? Depende da situação
No início de junho, a F1 anunciou os primeiros oito grandes prémios da temporada, todos na Europa. Portimão pode chegar numa segunda remessa e, a acontecer, há três datas em cima da mesa: 27 de setembro e 4 ou 11 de outubro.
Outra questão que ainda não está definida é a presença ou não de público. Paulo Pinheiro reconhece que seria “um desgosto” se Portugal voltasse a receber a F1, 24 anos depois da última vez, no Estoril, e o evento tivesse de ser realizado à porta fechada, mas que a segurança está acima de tudo. “Só teremos público se acharmos que as condições sanitárias estão asseguradas. O nosso circuito, por uma questão física, pela dimensão que tem, pelo número de entradas e saídas, por ser ao ar livre e pelas infraestruturas que tem à volta, talvez seja o sítio em Portugal com mais condições para receber público”, explica o responsável do AIA. Um plano de segurança já está a ser trabalhado, e a solução, mesmo que a situação epidemiológica assim o permita, nunca passará por encher os 90 mil lugares das bancadas.
*A Tribuna Expresso republica este artigo por ocasião do GP de Portugal que se disputa este fim de semana