Fórmula 1

“Schumacher”, a lenda viva que não queria ser uma estrela

“Schumacher”, a lenda viva que não queria ser uma estrela
Paul-Henri Cahier/Getty
O documentário da Netflix sobre o heptacampeão do mundo de Fórmula 1 que buscava “100% de perfeição” é mais que isso. É um filme (perdoem-nos os spoilers) no qual o protagonista é um homem tímido, descontraído apenas quando estava distante dos holofotes, que não gostava de falar das suas qualidades para não parecer arrogante e que também não expunha os seus defeitos. “Encontrá-los é uma função vossa”, afirmava o alemão, nascido numa família pobre, que conquistou as primeiras corridas com karts equipados com o lixo que os adversários não queriam

“Nós e o carro temos de ser um só”.

A voz é a de Michael Schumacher, enquanto as imagens de arquivo mostram o Ferrari do Barão Vermelho serpentear as ruas estreitas do Mónaco, o emblemático circuito citadino da Fórmula 1 onde não há margem de erro. “100% de perfeição. Chegar aos 100% é o meu objetivo. Sou esse tipo de pessoa. Não conseguiria viver com menos do que isso. Não gosto de falar da minha qualidade, pois pareceria arrogante. E não gosto de falar dos meus fracassos, pois encontrá-los é uma função vossa”, crava o heptacampeão mundial logo no início do documentário, disponibilizado pela Netflix esta quarta-feira, que retrata os episódios mais marcantes de uma carreira que se confunde com a própria História da principal categoria do automobilismo.

Ao longo de uma hora e 52 minutos, o filme guia também o público até à vida íntima de um leão nas pistas, para quem o limite esteve muitas vezes para lá do risco tolerável por outros pilotos, o que catapultou um alemão tímido para a grelha da frente da atenção mediática, logo ele que só pedia uma vida normal. “Não façam de mim uma estrela. Não me ponham num pedestal. Não quero isso”, dizia Michael Schumacher, quando ainda jovem chegou ao paddock, sem tempo a perder na missão de mostrar que era o melhor.

Passar despercebido era um desejo impossível de concretizar: Schumi quebrou todos os recordes que à época pareciam inatingíveis (até Lewis Hamilton ter chegado para provar o contrário), extremou opiniões e nunca foi consensual, vivendo na memória coletiva dos fãs da F1 até hoje como uma divindade suprema, para uns, e um vilão capaz de tudo para vencer, na opinião de outros.

“Schumacher”, o documentário produzido pela B 14 Film e co-realizado por Hanns-Bruno Kammertöns, Vanessa Nöcker e Michael Wech, traz, além de imagens raras, várias entrevistas exclusivas. Desde logo, a família, com testemunhos do pai, Rolf, do irmão mais novo Ralf (também ex-piloto de F1 que partilhou as pistas com Michael), da mulher Corinna, e dos filhos Gina e Mick — que nesta época de estreia carrega o pesado nome de família para o recolocar no grid da Fórmula 1. A título de curiosidade, Mick estreou-se com 22 anos, a mesma idade que o pai tinha quando chegou à F1.

“Quando agora penso no passado, as imagens que me vêm à cabeça costumam ser de nós os quatro a divertirmo-nos. Vejo imagens nossas a conduzir um kart no prado. Vejo imagens nossas a vaguear por aí com póneis, sentados numa carruagem. São mesmo muitos momentos que recordo com alegria”, conta o atual piloto da Haas.

Tudou mudou a 29 de dezembro de 2013. Um grave acidente enquanto esquiava na neve de Méribel, em França, deixou o germânico em coma e em estado crítico após bater com a cabeça numa rocha. Desde então, a vida dos Schumacher ficou virada do avesso e o quadro de saúde de Michael é um dos segredos mais bem guardados pela família até hoje.

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“É claro que tenho saudades do Michael todos os dias. Mas não sou só eu. São os miúdos, a família, o pai… Todos os que o rodeiam. Todos têm saudades do Michael. Mas o Michael está cá. Está diferente, mas está cá e isso dá-nos força”, relata Corinna, a companheira que sempre esteve ao lado do mito, muito antes da fama, muito antes da ascensão ao topo, e que depois da queda mantém-se firme na pole position de quem sabe cuidar o amor de uma vida, defendendo a posição conquistada com o coração, mantendo a família na liderança.

“Estamos a tentar continuar como família, como o Michael gostava e ainda gosta, e prosseguimos com as nossas vidas. ‘Privado é privado’, como ele dizia. É muito importante para mim que ele possa continuar a desfrutar da sua vida privada o máximo possível. O Michael sempre nos protegeu e agora protegemos nós o Michael”, explica a esposa.

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Poucos o podem ver. Mick estava ao lado do pai naquele fatídico dia, viu tudo. “Desde o acidente, estas experiências, estes momentos, que muitas pessoas têm com os pais, já não existem, ou existem menos. E, para mim, é um pouco injusto. Acho que eu e o meu pai nos entenderíamos de uma forma diferente hoje em dia, simplesmente porque falamos uma língua semelhante, a língua do automobilismo. Teríamos muito mais para falar. É nisso que penso a maior parte do tempo, que seria muito fixe. Dava tudo para ter isso”, confidencia Mick, com um olhar perdido, engolindo em seco para segurar as lágrimas.

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O filme inclui igualmente testemunhos de quem privou com Schumacher, como o manager Willi Weber, que o conduziu até à Fórmula 1, o empresário Flavio Briatore, com quem conquistou os dois primeiros títulos mundiais ao volante da Benetton, o lendário patrão da F1 Bernie Ecclestone, bem como Jean Todt e Ross Brawn com quem Schumi construiu uma hegemonia avassaladora na Ferrari.

Nem os rivais Damon Hill, Mika Hakkinen ou David Coulthard ficaram de fora na hora de enaltecer o espírito competitivo do heptacampeão. “A abordagem dele para chegar à vitória era a de que não podia haver medo. Ele não pensava: ‘Posso magoar-me ou alguém pode magoar-se’. Fui falar com o Michael e disse-lhe: “Olha, meu, não podes fazer isto a 300 km/h e comigo muito mais rápido. Não me podes bloquear’. Ele limitou-se a encolher os ombros e respondeu: ‘Mika, isto é uma corrida’”, lembra o finlandês voador.

“Há o Michael, piloto: inflexível, rápido, determinado e duro. E depois há o homem privado, o homem de família. Passei muitos serões a confraternizar com ele, a beber Bacardi-Cola e a fumar charuto. Era uma pessoa completamente diferente, porque aí não havia competição, só partilha de bons momentos”, narra Coulthard, oponente no asfalto e companheiro de Schumacher no karaoke, onde acabava invariavelmente a cantar “My Way”, de Frank Sinatra.

Estranhamente ou não, dos vários colegas de equipa que Michael teve ao longo da carreira, apenas o seu escudeiro irlandês, Eddie Irvine, faz uma aparição no documentário. Não seria de esperar, claro, que a família permitisse que Rubens Barrichello falasse sobre Schumacher, com quem teve vários momentos de tensão e que por várias vezes criticou o comportamento do alemão nas pistas. Todavia, não se percebe os motivos pelos quais Felipe Massa ou Nico Rosberg, pilotos que aceitaram pacificamente o protagonismo dado a Michael dentro da equipa, foram desclassificados do guião.

Quem não podia faltar era Sebastien Vettel, tetracampeão mundial que sempre teve Schumacher como ídolo de infância.

Vettel ao lado de Schumacher, o seu ídolo de infância
PORNCHAI KITTIWONGSAKUL / GETTY IMAGES

O Rei do Lixo

Michael Schumacher ainda não sabia ler nem escrever quando guiou pela primeira vez um kart, construído pelo pai, Rolf, que geria o kartódromo de Kerpen-Manheim, onde a mãe, Elisabeth, vendia bebidas e sandes no bar durante as corridas.

“Tudo começou aos quatro anos. O meu pai sempre se interessou por trabalhar em motas ou coisas pequenas. Tínhamos um ciclomotor antigo, com uma velocidade de 40 km/h, e ele colocou-o num kart para crianças. E, logo desde o início, eu gostei muito”, recorda Michael.

Ao contrário dos seus adversários, Schumi não tinha nascido numa família rica que lhe permitisse sonhar com uma extremamente cara carreira no automobilismo. “Usávamos sempre o equipamento mais barato disponível. Eu tirava pneus do lixo, punha-os no kart e ganhava corridas com eles. Sempre gostei de ganhar com o pior e não com o melhor material. Ter de lutar dessa forma era mais uma motivação para mim”, realça o antigo piloto alemão, numa entrevista de arquivo.

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A primeira grande conquista chegou em 1983, quando, a jogar em casa, venceu no circuito de Kerpen, a contar para o Campeonato Mundial de Karting Júnior. Aproximadamente 80 pilotos de 18 nacionalidades estavam lá, mas o jovem alemão de 14 anos era apontado como o principal favorito e, já nessa altura, atraía as atenções da imprensa, até porque corria com uma licença do Luxemburgo. Porquê? Falta de dinheiro, mais uma vez. “As corridas de qualificação na Alemanha custam dinheiro e, se formos eliminados, não nos apuramos para o campeonato [mundial de karts]. Mas no Luxemburgo somos os únicos adversários, não custa nada e qualificamo-nos”.

Pois é, o pragmatismo de Schumacher já era um traço bem definido na adolescência.

Quem por lá estava era também um ilustre desconhecido miúdo finlandês. Essa corrida de karts foi a primeira vez que Hakkinen e Schumacher se digladiaram nas pistas. Mika ficou impressionado com o que viu: “Era incrível. [...] Um estilo de condução completamente diferente dos outros. Muito controlado. O estilo de condução era muito físico. O número de erros que ele cometia era sempre muito baixo. Os outros faziam uma volta boa e na seguinte eram um pouco piores, mas o Michael era sempre consistente. Enquanto o estava a ver, reparei logo: ‘Este tipo é bom!’”

Michael venceu aquela prova. Ganhou 460 marcos na hora e mais 236 posteriormente. Era uma fortuna para alguém que não tinha nada, mas uma bagatela para bancar uma temporada nas categorias de acesso à Fórmula 1. Até que cinco anos mais tarde, em 1988, apareceu o empresário Willi Weber, o primeiro manager que teve. “O Michael Schumacher não tinha nada, na altura, nem sequer 500 marcos para financiar uma temporada que custava entre 600 e 700 mil”, conta Weber, que lhe ofereceu um contrato de cinco anos, um carro e um salário de dois mil marcos por mês. Depois chegou o apoio da Mercedes, construtora que foi determinante para alavancar a carreira do alemão e fazê-lo chegar até à Fórmula 1.

A prisão de um homem que soltou uma lenda

Michael Schumacher no Grande Prémio da Bélgica de 1991, onde se estreou pela equipa Jordan
Paul-Henri Cahier / GETTY IMAGES

A sorte atirou o jovem leão de 22 anos para um território dominado por raposas velhas.

Quando Michael chegou pela primeira vez ao paddock, a Fórmula 1 vivia a sua época dourada, com quatro grandes figuras que marcaram a década de 1980 e os primeiros anos de 1990. Eram eles, nada mais nada menos, do que Ayrton Senna, Alain Prost, Nigel Mansell e Nelson Piquet. Mas, desde logo, se percebeu que Schumacher tinha um desrespeito educado em relação a eles. Reconhecia-lhes o estatuto, mas estava ali para competir, arriscando tudo e não estava disposto a levantar o pé para ninguém.

Schumacher ao lado de Nigel Mansell, campeão mundial de 1992
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A estreia aconteceu no Grande Prémio da Bélgica de 1991, disputado no templo de Spa-Francorchamps. A equipa Jordan estava desesperada à procura de um piloto para substituir Bertrand Gachot, que tinha sido preso por atacar um taxista com gás pimenta. Uma discussão no trânsito que acabou mal e os 300 mil dólares pagos pela Mercedes convenceram Eddie Jordan a dar uma oportunidade ao alemão no monolugar que estava livre.

A corrida acabou cedo, logo na primeira volta, para Michael Schumacher, mas o sétimo lugar obtido na qualificação chamou a atenção de alguns chefes de equipa, nomeadamente de Flavio Briatore, que o contratou para a Benetton dois dias após o que viu em Spa. Um ano depois, no mesmo circuito, Schumacher venceu a primeira corrida da carreira.

As insónias após o adeus a Senna e o medo de morrer

As temporadas de 1992 e 1993 já tinham trazido vários pódios e duas vitórias para Michael, que deixava de ser apenas uma promessa e se tornava numa sólida certeza. Senna sabia-o melhor que ninguém.

Depois de Prost se ter aposentado, a sua principal ameaça vinha de um alemão, menos calculista, mas muito mais ousado. Ayrton chegou mesmo a confrontar Michael, no Grande Prémio da França de 1992, para lhe dar uma lição de bom comportamento na pista, por causa de uma batida por trás: “Fizeste merda, mas tudo bem. Vim falar contigo”. Schumacher ouviu, calou, mas não gostou de ser tratado como um menino que fez asneira na escola.

Ayrton Senna discute com Michael Schumacher após o acidente entre os dois no Grande Prémio da França de 1992
Bongarts / Getty Images

Chegou a época de 1994. Senna tinha trocado a McLaren pela dominante Williams, mas era a Benetton que parecia ter o melhor carro no início da temporada. A Fórmula 1 chegava a Ímola, para o Grande Prémio de San Marino. Schumacher trazia três vitórias na bagagem e Ayrton somava três abandonos.

Senna sabia que tinha de ganhar e liderava aquela corrida, seguido de perto por Schumi, quando entrou na curva Tamburello e o carro seguiu reto contra o muro a quase 300 km/h. Aquele acidente é o episódio mais negro alguma vez visto na Fórmula 1. Era a morte de um ídolo, mas a FIA alegadamente não quis que o óbito fosse declarado ainda no circuito, caso contrário a prova teria de ser cancelada. A corrida foi retomada, sem que os pilotos soubessem do estado de saúde do brasileiro. Michael venceu, prometeu a Briatore que não haveria banho de champanhe no pódio, mas não conseguiu deixar de esboçar um tímida celebração.

Muitos nunca o perdoaram por isso.

Michael sempre se defendeu, sabia que Senna estava em coma, “mas coma pode ser muita coisa”, só duas horas mais tarde é que lhe disseram que a “coisa estava feia”, contudo Michael era incapaz de aceitar a realidade, não fazia sentido Ayrton estar morto, até porque só pensava que “ele ia ser o campeão”.

Durante várias semanas após a fatalidade, teve insónias, não conseguia dormir mais do que três horas e, quando chegou a Silverstone, contou todos os cantos da pista onde poderia morrer se batesse. Nunca antes Michael tinha mostrado medo de entrar no cockpit.

Anton Want / Getty Images

Com a perda de Senna, Schumacher era o novo protagonista e principal candidato ao título de 1994, conquistado na última prova, na Austrália, onde só precisava de garantir que não cruzava a meta atrás de Damon Hill. Foi isso que assegurou, depois de ter cometido um erro que danificou o seu carro. Quando Hill ia ultrapassá-lo, Schumacher virou contra ele, acabando com a corrida dos dois.

Era uma forma polémica, antidesportiva para muitos, de se sagrar campeão. Porém, Damon Hill, no próprio documentário, deixa a pergunta: “Se eu estivesse num carro, com um ponto de vantagem sobre o meu adversário, e o meu rival aparecesse por dentro, o que faria eu?” E dá a resposta mais honesta que qualquer piloto de F1 pode dar: “Não sei”.

General do exército vermelho que nunca o abandonou

Em 1995, Michael Schumacher tornou-se bicampeão mundial e a supremacia da Benetton parecia inabalável. Mas o alemão não queria sentir-se demasiado confortável e procurava um novo desafio. Nesse sentido, não haveria maior risco do que assinar contrato com a equipa mais lendária da F1 e que há muito estava afastada da glória, onde teria de enfrentar os adversários e a gigante pressão mediática da imprensa italiana, suportar o enorme peso das expetativas dos tiffosi e lutar contra o próprio carro que não estava à altura.

Foram quatro anos de travessia no deserto.

Em 1996, viu Damon Hill ser campeão. Em 1997, nem a manobra desesperada contra Jacques Villeneuve em Jerez impediu o canadiano de conquistar o título. Em 1998 e 1999, era impossível bater o canhão da McLaren conduzido por Hakkinen. Nos corredores da Ferrari, revela o documentário, muitos começaram a questionar se a parceria com Schumacher alguma vez traria resultados e se o alemão seria mesmo o piloto certo para comandar a scuderia. Michael precisava urgentemente de outro campeonato mundial, para provar a todos que as suas capacidades permaneciam intactas.

Embora nos escritórios das chefias da Ferrari pairassem dúvidas, Schumacher tinha na garagem o principal trunfo.

Clive Rose / Getty Images

Ele soube, como poucos, criar uma família unida ao seu redor, empenhada em fazer tudo para o tornar campeão novamente. Passava horas com os mecânicos e engenheiros, sabia o nome de todos, fruto das noitadas que com eles fazia a trabalhar para aperfeiçoar o carro, focado nos mais pequenos detalhes. Tinha sempre um “obrigado” ou um “por favor” para o seu exército vermelho que, como um general, foi capaz de manter motivado, mesmo nas alturas de maior tensão. A paz só chegou no final da temporada de 2000, quando Michael ganhou o Grande Prémio do Japão e venceu o campeonato. O mais complicado estava feito: sacudir a pressão.

O incontestável patrão da Ferrari, a partir daquele momento, era Schumacher.

O resto é História, com uma passadeira vermelha estendida nos anos seguintes para o Barão Vermelho conquistar mais quatro títulos consecutivos. O homem que não queria ser uma estrela tornou-se uma lenda. E está viva.

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