Fórmula 1

Uma corrida maluca para uma Fórmula 1, outra vez, de doidos

Uma corrida maluca para uma Fórmula 1, outra vez, de doidos
Dan Mullan/Getty
Resumindo um caótico Grande Prémio da Arábia Saudita que teve vários incidentes, bandeiras vermelhas, safety cars e polémicas que até levaram os comissários de pista a pedirem a concordância das equipas para validarem uma decisão, Lewis Hamilton ganhou, Max Verstappen acabou em segundo e ambos irão empatados em pontos para a última corrida da época, no próximo fim de semana, que decidirá o título mundial

A versão alcatroada que a Arábia Saudita arranjou para entrar na Fórmula 1 é sinuosa, delgada nas curvas e que nem esparguete de asfalto na forma como foi desenhada. Forçando outra analogia, é um gigante piscar de olho à velocidade com o número de curvas que tem (27) e a velocidade média (252 km/h) que os manuais destas coisas dizem haver no circuito de Jeddah, onde os pilotos perdem quilos a suar em bica dentro dos fatos, ficam com os cabelos colados ao crânio quando se livram dos capacetes e têm pessoas a refrescarem-lhes as nucas com sacos de gelo assim que pulam carro fora.

Sabemo-lo, repetidamente, devido ao tipo de corrida que se suspeitava poder ser parida por este circuito quando o seu floreado teórico fosse testado na prática, a partir do momento em que tantos humanos por lá andassem a pilotar carros na vertigem de serem o mais velozes possível: um atafulhar de incidentes e quasi-toques na tão estreita pista que parece é ter sido feita para provocar faíscas entre carros. E uma hora depois da partida do Grande Prémio, praticamente não tínhamos visto uma corrida.

O arranque fez-se manso, com os cinco pilotos da frente a nem se ameaçarem e a partilharem um diz que disse que esta penúltima prova da temporada seria um poço de emoção por Max Verstappen, o jamais campeão mundial, poder ali garantir a primeira conquista contra quem já o conseguiu sete vezes, Lewis Hamilton. Em 10 voltas não o foi, de todo, mas, de repente, Mick Schumacher perdeu a traseira do seu Haas e estatelou-se no muro de proteção.

À bandeira amarela seguiu-se o abanar da vermelha porque era necessária gente em pista para recompor os estragos e essa cor precipitou o caos em Jeddah. Na segunda partida da noite, Hamilton ultrapassou Verstappen logo na primeira espreguiçadela de metros e a reação do neerlandês foi tentar esgueirar-se por onde não havia espaço — saiu de pista, reentrou mais à frente e pouco depois Nikita Mazepin entrou traseira dentro no Williams de George Russell, que cravou o pé no travão mesmo à sua frente. O vermelho voltava a ser acenado e viria aí nova arrancada.

Até os pilotos se realinharem na grelha, assistiu-se a um guião hollywoodesco de brasas a serem puxadas à sardinha própria. A Red Bull queria Verstappen partir na frente de Hamilton, alegando que o trintão empurrara o vintão alcatrão fora, a Mercedes defendia o oposto e o comissário de pista parecia um regateador de feita, perguntando às equipas se concordavam com a ordem 1.º Ocon (que silenciosamente se intrometera entre os dois ímanes de atenção), 2.º Hamilton e 3.º Verstappen. Não se tomava ou assumia uma decisão, antes requeria-se a bênçãos.

Pool

Quando, de facto, se pôde ver uma corrida, viu-se o aspirante a campeão mundial da Red Bull a zarpar na terceira partida da noite com o seu estilo de se atirar para a mínima nesga de hipótese de fintar carros alheios. O neerlandês ficou na liderança durante 15 agradáveis voltas apesar de insossas, mas houve-as, viu-se alguma constância e isso era um marco neste Grande Prémio — foi a maior série de voltas encadeada na frouxidão a que se estava a assistir na Arábia Saudita. Até que, lá para trás da corrida, um toque de Tsunoda em Vettel deixou pegadas na pista.

Chegaríamos aos três safety cars virtuais para que todos os detritos fossem retirados da pista, o dedo imaginário a premir o botão de pausa voltou a aparecer e quando, finalmente, se deixou as coisas correrem, a polémica esperneou de novo neste Grande Prémio da Arábia Saudita embora sem que tal implicasse outra paragem na corrida.

Uma picardia das que se querem entre Hamilton e Verstappen, à 37.ª volta, fez com que o segundo saísse de pista numa curva para se manter à frente do primeiro, com um vernáculo algo furibundo do inglês pelo meio. “This guy is f****** crazy, man”, ouviu-se no rádio da equipa, que se traduz livremente por um mais simpático “este tipo é maluco” que nem por isso fez algo pela redução da animosidade aparente entre os dois pilotos nesta corrida.

E aqui as coisas complicaram-se mais um coche.

A manigância de Verstappen para se agarrar à liderança foi castigada pelos comissários de pista, que o ordenaram a deixar-se ultrapassar por Hamilton, na 38.ª volta. Mas, ao cumprir a imposição, o neerlandês travou diante do inglês quando ambos seguiam na mesma trajetória e, ao desviar-se do rival, o campeoníssimo da Mercedes roçou com a asa dianteira no estouvado da Red Bull. Eram faíscas figurativas e literais a espicaçarem uma luta pelo título mundial como já não se via há tempo demais.

Lars Baron/Getty

Verstappen ainda seria penalizado com cinco segundos e, depois, outra vez obrigado a ceder passagem a Hamilton, à 42.ª volta, que diligentemente cumpriu antes de matreiramente recuperar a posição — e a liderança — no segundo seguinte, talvez aproveitando-se do piloto inglês ainda estar a tentar perceber o que estava a acontecer. Nos entretantos, as breves conversas entre responsáveis das equipas e diretores de corrida pareciam um ruído de larachas, tal a sucessão de mas-eu-disse-isto-quando-disseste-aquilo que iam sendo trocados entre freguesias.

Entre o barulho das luzes, Hamilton voltaria a ultrapassar Verstappen sem percalços à mistura a sete voltas do fim e acabaria por ganhar a corrida, a terceira consecutiva esta época e a 103.ª da carreira (com o lado direito da asa dianteira carcomido pelo choque com o neerlandês). Além disso, de vibrante houve apenas a ultrapassagem nas últimas de Valtteri Bottas a Esteban Ocon na reta da meta, celebrada com murros no ar pelo finlandês e esmurrada com socos de frustração do francês na auréola do seu carro. Mini-porradas a terminar um Grande Prémio que foi uma enorme pancada na ordem das coisas da Fórmula 1.

Suspirando de alívio depois de tantas coisas para serem vistas e resumidas, e feitas as contas, esta corrida em Jeddah feita com a intermitência de soluços caóticos deixa Max Verstappen e Lewis Hamilton empatados na classificação mundial, com 369.5 pontos e com apenas uma prova a faltar no calendário, no próximo fim de semana, no Abu Dhabi. Há quanto tempo um título mundial não era adiado até à última? Perdoem quem escreve e um pouco atazanado está com tanta confusão, mas não é necessário perguntar à Google para se concluir que há muito que a Fórmula 1 não era tão insuflada por uma disputa entre dois pilotos.

Por isto, por outras coisas ou uma mescla de tudo, Hamilton teve que se abrigar das câmaras e sentar-se num local mais longe das câmaras, aparentemente para se recompor, diria ele “que foi incrivelmente duro”; enquanto Verstappen meio que olhava para o vazio, quase ligando patavina à corrida de loucos na qual fora um dos protagonistas principais e “aconteceram muitas coisas com as quais não [concorda] totalmente”, garantiu, nas primeiras palavras sobre um Grande Prémio que não foi bem isso, ou pelo menos não apenas isso.

Foi uma corrida maluca, cheia de episódios de sanidade momentaneamente questionável, que inflacionou ainda mais esta Fórmula 1 de interesse com uma rivalidade a ecoar — ao de leve ou fortemente, sendo comparável ou não, isso cabe ao julgamento de cada um — tricas antigas entre pilotos passados, que puxam pelo saudosismo das gerações que assistiram ao antigamente de Lauda, Hunt, Prost, Senna, Piquet ou Hill. Esses foram tempos em que era uma noite de Fórmula 1 de doidos e, esta noite, viu-se uma versão moderna dessa doidice.

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