Fórmula 1

Lewis Hamilton não vai para a Ferrari para ser campeão. Vai, como outros, em busca da imortalidade

Lewis Hamilton não vai para a Ferrari para ser campeão. Vai, como outros, em busca da imortalidade
HAMAD I MOHAMMED
O britânico chegará à Ferrari em 2025, com 40 anos e poucas possibilidades de manchar o seu legado, aconteça o que acontecer. Mas tal como Schumacher, Alonso ou Vettel, assinar pela Ferrari é mais do que ganhar: é escrever definitivamente o seu nome na história da mais mítica das equipas ou esgotar-se a tentar fazê-lo. E se Hamilton se tornar campeão na scuderia, será seu um dos maiores feitos da história do desporto

Pode ser que seja daquele vermelho. Do símbolo do Cavallino Rampante. Ou da história. E no desporto, a história respeita-se, tem peso. A Ferrari é a única equipa que correu qualquer uma das 73 temporadas desde que a Fórmula 1 é a Fórmula 1, desde o primeiro Mundial, em 1950. O nome é apenas Scuderia Ferrari e não Scuderia Ferrari e mais não-sei-quantos-nomes de patrocinadores atrelados. Na saúde e na doença, a Ferrari é a Ferrari, dona de 15 títulos mundiais de pilotos, mais do que qualquer outra equipa, proprietária de uma aura de misticismo no desporto automóvel difícil de igualar, seja na hora da vitória ou hora da derrota.

Esse fascínio é difícil de entorpecer na mente de um piloto. Não há quem não sonhe ou tenha sonhado em vestir aquele macacão vermelho e sentar-se num dos carros escarlate tão italicamente construídos em Maranello, onde Enzo Ferrari edificou não só uma fábrica mas uma lenda. Não basta querer ter um Ferrari, é preciso merecê-lo. Lewis Hamilton não é diferente dos demais. E depois de quase três décadas de ligação direta ou indireta à Mercedes, o chamamento da Ferrari resultou num casamento inesperado, pela idade de Hamilton, que terá 40 anos quando chegar à equipa em 2025, mas que esteve permanentemente latente, nas palavras sempre elogiosas do sete vezes campeão do mundo, nos flertes persistentes entre piloto e equipa.

“Estaria a mentir se dissesse que nunca pensei em acabar a minha carreira noutro lugar. Tu olhas para os pilotos da Ferrari nos ecrãs quando estás na pista e claro que pensas como seria estar de vermelho”, revelou Hamilton numa entrevista à “ESPN” no ano passado. As suas palavras poderiam ser as de qualquer piloto.

Com a Mercedes, Hamilton venceu seis dos seus sete títulos mundiais
Bryn Lennon/Getty

Diz Lawrence Barretto, jornalista que há anos acompanha a Fórmula 1 por dentro, que na última primavera Lewis Hamilton recebeu uma chamada de John Elkann, herdeiro do industrial italiano Gianni Agnelli e agora homem forte da Ferrari. Não era a primeira, mas desta vez o britânico pensou com mais carinho na proposta de Elkann. Para Lewis Hamilton, dono dos recordes mais importantes da história da Fórmula 1 - ninguém ganhou mais corridas (103) nem garantiu tantas pole positions (104) e só Michael Schumacher tem o mesmo número de títulos (sete) - não há muito a perder em dar o salto de fé e acabar a carreira na Ferrari, depois de dois anos sem qualquer vitória na Mercedes. O seu legado está construído, seguro, o seu papel na história ninguém o vai apagar. Mas o que Lewis procura em Maranello é outra coisa, bem maior: a imortalidade.

Porque se Lewis Hamilton se tornar campeão na Ferrari, acabando com um jejum que caminha para 20 anos da equipa italiana - o último campeão vestido de vermelho foi Kimi Raikkonen, em 2007 - e chegar em consequência ao seu 8.º título mundial, já não estamos a falar de história da Fórmula 1, mas num dos maiores feitos da história do desporto, passível de estátuas e nomes de ruas, da eterna admiração dos sempre apaixonados tiffosi.

Lá está, a imortalidade.

Queda e glória na mais importante (e complicada) escuderia

O canto da sereia da Ferrari não se fez apenas da sua inimitável história e misticismo. Sublinha Lawrence Barretto que John Elkann terá convencido Hamilton colocando-o a par dos objetivos da Ferrari para 2026, data da próxima grande alteração de regulamentos na Fórmula 1. Com os carros a ficarem mais pequenos e leves, a previsão é que o motor ganhe preponderância face à aerodinâmica - e a potência da unidade motriz sempre foi o ponto forte da Ferrari. A temporada de 2026 marcará também a estreia do primeiro motor construído pela Red Bull, em parceria com a Ford, e as dores de crescimento são possíveis para o grande dominador da Fórmula 1 nos últimos dois anos.

Quando, em 2012, anunciou a saída de uma equipa de topo como era então a McLaren, para a Mercedes, muitos duvidaram do passo de Hamilton, que colocava nas mãos a continuidade da sua carreira numa equipa que se passeava pelo meio do pelotão. Com a mudança de regulamentos e entrada dos motores híbridos na Fórmula 1, a Mercedes passou a ser a maior potência do desporto. Hamilton estava lá e juntou mais seis campeonatos ao título de 2008 conquistado na McLaren. Agora, o britânico espera que o seu instinto continue afinado.

Hamilton e Charles Leclerc serão colegas de equipa a partir de 2025
Clive Mason/Getty

Para a Ferrari, que ofereceu um contrato “plurianual” a Hamilton, a oportunidade de voltar aos títulos com um nome como o do britânico ao volante valerá o risco de mudar, de novo, a abordagem. Ou, na verdade, a ela regressar. Em 2019, a equipa apostou em Charles Leclerc, então com apenas 21 anos e com apenas uma temporada na Fórmula 1, com a Sauber. O monegasco tornou-se no segundo piloto mais jovem de sempre a correr pela Ferrari. Dois anos depois chegaria Carlos Sainz, não tão imberbe ou inexperiente, mas ainda assim um jovem. A mudança de paradigma não resultou em títulos, ainda que dificilmente o insucesso se possa atribuir aos pilotos. Sainz sairá com a entrada de Hamilton; Leclerc, no passado, já elogiou e muito o britânico, mas não estará seguramente extasiado com a possibilidade de perder o estatuto de líder.

E Hamilton terá de ser líder porque a sua contratação é a elevação ao cubo de outros roubos espectaculares da Ferrari: Alain Prost, Michael Schumacher, Fernando Alonso ou Sebastian Vettel, todos eles responderam ao chamamento da scuderia depois de se tornarem campeões mundiais noutras paragens. Todos eles procuraram o derradeiro desafio: a glória na mais importante (e complicada) das equipas. Só Michael Schumacher a conseguiu e não foi sem esforço. O alemão passou quatro anos a fazer trabalho de sapa, a trazer para a Ferrari os melhores mecânicos e engenheiros, a tornar um carro ingovernável numa máquina de fazer títulos. Foi cinco vezes campeão com a Ferrari, de 2000 a 2004. É história cravada na história da Ferrari.

Prost, esse, nem terminou a segunda época com a Ferrari, em 1991. Faz um ano sabático em 1992 e voltou à Williams, em 1993, para ser pela quarta vez campeão mundial. Já Fernando Alonso e Sebastian Vettel foram repetindo frustrantes segundos lugares no Mundial, esbarrando na incapacidade da equipa em ultrapassar Red Bull e Mercedes, respetivamente. Saíram os dois pela porta pequena, quebrados. Para eles, morreu ali, em Maranello, qualquer sonho de imortalidade, o mesmo que Hamilton vai em busca a partir de 2025.

Na Ferrari, Hamilton reencontrará Frédéric Vasseur, com quem se fartou de ganhar nas fórmulas de acesso à F1
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Só que Hamilton tem outro estatuto, enquanto piloto e enquanto figura que mudou o paradigma da Fórmula 1. Correr pela Ferrari é correr com uma pressão extra em cima das costas, pressão que o britânico não terá. Ou terá em menor medida, porque já conquistou tudo o que há para conquistar. Pode ser uma daquelas situações em que todos ganham, para lá da pancada emocional que será para outras equipas ver Hamilton de vermelho. Na Ferrari, Hamilton vai reencontrar Frédéric Vasseur, francês que é chefe de equipa da scuderia há um ano e com quem o inglês trabalhou (e muito venceu) nas categorias inferiores de acesso à Fórmula 1. Os dois mantiveram uma forte amizade desde aí. Em abril do último ano, o “Corriere dello Sport” revelou que Vasseur roubou vários engenheiros à Red Bull, que deverão começar a trabalhar na Ferrari já nesta temporada, preparando a chegada de Hamilton.

Em 2019, depois de Hamilton conquistar o seu sexto título mundial, Gerhard Berger, o austríaco que passou pela Ferrari em duas ocasiões nos anos 80 e 90, épocas de intensa crise em Maranello, disse que o britânico devia bater todos os recordes e depois seguir para a Ferrari. “Não posso recomendar outra coisa que não seja: se tens a oportunidade de correr por uma vez pela Ferrari, aproveita-a”, disse, citado pelo “The Guardian”. “É uma experiência incrível. Correr pela Ferrari é muito emocional. Alguns não ligam, mas outros reagem muito. Comigo mexeu muito porque eu adorava a Ferrari, a mentalidade italiana, a marca. E acho que o Lewis também”, frisou ainda, num relato que diz bem do quão visceral pode ser entrar naquele carro, onde tantos quebraram e uns poucos entraram no panteão.

Hamilton quer ser um desses poucos.

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