Futebol feminino

A jogadora portuguesa é jovem, instruída, mal paga e discriminada. Mas o futuro do futebol é feminino

A jogadora portuguesa é jovem, instruída, mal paga e discriminada. Mas o futuro do futebol é feminino
RICARDO NASCIMENTO/epa

Nesta quinta-feira em que se assinalou o Dia Internacional da Mulher, o Expresso revela os resultados de um inquérito feito pelo Sindicato dos Jogadores às jogadoras de futebol portuguesas, que estão cada vez melhores, mas ainda precisam de mais condições: a maioria não recebe para jogar

É provável que o leitor não conheça os nomes que se seguem, mas é preciso dizê-los (e depois já vamos ao porquê):

- Hedvig Lindahl (seleção: Suécia; clube: Chelsea);
- Lucy Bronze (Inglaterra; Lyon);
- Nilla Fischer (Suécia; Wolfsburg);
- Wendie Renard (França; Lyon);
- Irene Paredes (Espanha; PSG);
- Camille Abily (França; Lyon);
- Dzsenifer Marozsán (Alemanha; Lyon);
- Marta (Brasil; Orlando Pride);
- Pernille Harder (Dinamarca, Wolfsburg);
- Lieke Martens (Holanda; Barcelona);

- Alex Morgan (EUA; Orlando Pride).

Este é o melhor onze feminino do mundo em 2017, revelado esta quinta-feira pela FIFPro, o sindicato dos jogadores e das jogadoras de futebol no mundo. Todas as jogadoras deste onze jogam nas melhores ligas femininas do mundo e todas as jogadoras deste onze, juntas e somadas, não recebem sequer um quarto do que o que recebe um único jogador do onze masculino do ano: Neymar (PSG).

As contas - de um estudo da Sporting Intelligence - são até bem mais negras do que isso, se quisermos falar de igualdade: o salário de Neymar - €35,5 milhões por ano - dá para pagar a todas as 1693 jogadoras das melhores ligas femininas do mundo (França, Alemanha, Inglaterra, EUA, Suécia, Austrália e México).

infografia carlos esteves

E, claro, o salário de Neymar dava evidentemente para pagar a todas as 297 jogadoras da Liga Allianz portuguesa, constituída por 12 equipas. Duas delas, o Sporting CP e o Sporting de Braga, criadas na época passada, já são totalmente profissionais (o Benfica, que irá entrar no futebol feminino, pela 2ª divisão, em 2018/19, deverá seguir o mesmo caminho), mas as restantes dez ainda se mantêm semiprofissionais ou amadoras (Estoril, Vilaverdense, Valadares, Clube Futebol Benfica, Boavista, Ferreirense, Albergaria, Cadima, A-dos-Francos e Quintajense), o que cria uma disparidade de condições em Portugal.

Isto mesmo é claro nos resultados do inquérito feito pelo Sindicato dos Jogadores às jogadoras portuguesas da Liga Allianz (140 delas), em associação com a FIFPro, a que o Expresso teve acesso e que retratam a jogadora portuguesa: jovem, instruída, mal paga e discriminada.

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Mas, calma, nem tudo é mau. Em Portugal já há 7,3% de jogadoras que vivem do futebol, algo impensável há meia dúzia de anos, como conta ao Expresso a ex-internacional portuguesa Carla Couto, agora delegada do Sindicato dos Jogadores. “O facto de já existirem duas equipas profissionais é uma melhoria substancial ao que havia no meu tempo. Na nossa altura, ter boas condições era deixar as botas na rouparia e ter a roupa do treino lavada. Sempre sonhei ser profissional em Portugal e nunca consegui, mas agora elas podem sê-lo.”

Se tal é possível é também pelo trabalho de Carla, que visita diariamente os clubes e procura apoiar as jogadoras sócias do Sindicato (71,8%), e das gerações anteriores, que sofreram em campo. “Claro que hoje tenho um bocadinho de inveja delas, porque gostava de continuar a jogar, depois de tudo o que dei. Foi um caminho que se desbravou, com muita luta das gerações anteriores. Mas é preciso ver que a realidade ainda é amadora e ainda há jogadoras que pagam para jogar”, aponta a ex-jogadora, que foi internacional 145 vezes.

infografia carlos esteves
infografia carlos esteves

“O fundamental aqui era perceber a realidade do futebol feminino em Portugal, para vermos que soluções podemos encontrar para os problemas existentes. A realidade está neste momento em mudança e queremos ir de encontro às necessidades das jogadoras”, explica a delegada e embaixadora do futebol feminino no Sindicato, que ressalva os dados sobre a escolaridade das jogadoras portuguesas, porque “o futebol não é duradouro, nem vão jogar até aos 40 anos como eu”, graceja.

infografia carlos esteves

Atualmente, a maioria das 4284 jogadoras federadas em Portugal - nunca houve tantas mulheres a jogar futebol no nosso país, segundo os dados da Federação Portuguesa de Futebol - é jovem, ou melhor, muito jovem: 2696 das federadas são juniores, ou seja, têm 19 ou menos anos. E a maioria das jogadoras da Liga Allianz tem apenas entre 18 e 23 anos.

“Isto quer dizer que temos uma base muito boa, pronta a dar frutos no futuro - aliás, os resultados da seleção na Algarve Cup já o mostram. Não foi por acaso que ganhámos à Austrália, à Noruega e à China, seleções que estão acima de nós no ranking mundial. Há uma clara evolução e, logicamente, quando há melhores condições nos clubes há melhores jogadoras”, defende Carla, que chegou a jogar um ano na China e em Inglaterra.

Carla Couto foi campeã nacional e conquistou a Taça de Portugal feminina ao serviço do 1º Dezembro, clube entretanto extinguiu a sua equipa feminina

“É claro que as jogadoras amadoras, que vão treinar às 22h, após um dia de trabalho duro, se calhar não vão conseguir dar tanto. Haver condições e profissionalismo faz toda a diferença. As jogadoras portuguesas são muito evoluídas tecnicamente e basta que tenham boas condições para se baterem olhos nos olhos com as melhores”, garante, acrescentando que, apesar de ainda existir discriminação, o pior já lá vai.

“Na minha altura, vivemos tempos difíceis, em que eram mais os comentários deselegantes do que os incentivos à prática. Era ‘vai para casa lavar a louça’ e coisas assim do género. A mulher não tinha espaço para o seu desenvolvimento pessoal e reconhecimento na sociedade. Mas a jogadora portuguesa é persistente”, garante Carla, que continua a passar os fins de semana a ver jogos femininos, um pouco por todo o país.

infografia carlos esteves
Infografia de Carlos Esteves

“Vou falando com elas e dizendo-lhes que são elas que têm a responsabilidade de continuar isto, para que as novas gerações tenham condições ainda melhores do que as que há agora. O ideal era, em vez de ter duas equipas com grandes condições, ter seis ou sete ou oito - a afirmação do futebol feminino passa por aí. As jogadoras têm de lutar pelos seus direitos e ser valorizadas pela sua competência, não pelo seu género. E depois os resultados aparecem. Penso que as pessoas já perceberam isto: nós somos mulheres e somos desportistas de excelência.”

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