Futebol feminino

A bola é igual para todos, mas no Mundial ainda não são todas iguais

A bola é igual para todos, mas no Mundial ainda não são todas iguais
Maddie Meyer - FIFA

Há os EUA com Alex Morgan, capa da revista “Time”. Está lá a França com meia seleção vinda do Lyon, campeão europeu há quatro anos seguidos. E não falta o Brasil com a ginga de saia de Marta, a seis vezes melhor jogadora do planeta. Fora muito mais, porque “nunca houve tantas candidatas”, diz Raquel Infante, internacional portuguesa, à vitória no Mundial de futebol feminino, que arrancou esta sexta-feira ao fim de uma época “em que foram quebradas muitas barreiras”

Um milhar de milhão de pessoas a assistir pela televisão a 52 jogos é um número ambicioso, mesmo que assente nos 764 milhões que a FIFA garante terem visto o Campeonato do Mundo de futebol feminino há quatro anos. Este, o oitavo, que arrancou esta sexta-feira, em França, é o primeiro a contar com 24 seleções e, pelos vistos, com muitos estádios à pinha de gente.

A FIFA está a vender bilhetes a partir de 9€, por querer uma competição mais familiar e inclusiva, e conseguiu esgotar já o jogo de abertura (Parc des Princes, em Paris) e a final (Stade de Lyon), ambos com mais de 50 mil lugares disponíveis.

Esta forma mais numérica de olhar para a competição é redutora, simplista e nem arranha a superfície do que implica ser mulher e escolher fazer vida do futebol quando se é dona de bastante jeito para o jogar. É demasiado ignorante dos nomes dessas mulheres e das histórias que trazem nos pés.

O nome de Christiane Endler, por exemplo, até pode trocar as voltas à nossa bússola adivinhadora, mas ela é chilena e, na época passada, consideram-na a melhor guarda-redes da liga francesa. De luvas postas e com o usufruto da altura que tem (1,82 metros), é das melhores paradoras de remates do mundo, embora prefira jogar pelo Chile, seleção que entre 2014 e 2017 não fez um jogo devido à falta de apoios.

Lorena Benítez é argentina e vive em Buenos Aires, onde deixou Verónica Rivero, a namorada, com gémeos recém-nascidos há um mês. Porque está em França, com a seleção e, portanto, ambas terão fechado por uns tempos a banca que têm no mercado central da capital do país do tango. Por lá costumam estar, todos os dias, por volta das 02h, a fazer render o negócio enquanto Lorena vai treinando e jogando no Boca Juniors, grande do futebol mas mínimo no futebol feminino do país, que não deixa de ser amador para poder ser ganha-pão.

“Reggae Girlz” é a alcunha das jogadoras da Jamaica. Elas são a primeira seleção das Caraíbas a qualificar-se para a competição que aí vem, são históricas, mas, há um par de semanas, estão na Florida, nos EUA. Lá estiveram a organizar vários eventos de angariação de fundos.

Porque ainda estão no tempo em que membros da equipa técnica vão a um hipermercado comprar casacos quando faz frio em dias de treino; de precisarem de marcadores para riscarem o “Reggae Boyz” estampado nas mangas das camisolas, por utilizarem equipamentos da seleção masculina; e de na conta bancária de Hue Menzies, o selecionador, nunca ter caído um salário pago pela federação jamaicana desde que assumiu o cargo (em 2015).

O futebol feminino, por muito que tenha crescido e vá crescendo, com muitos pulos, ainda lida com as dores de crescimento provocadas pelo andar na corda bamba entre o amadorismo e o virar profissional a tempo inteiro, e em todo o lado.

Por isso, no mesmo mundo, existem Alex Morgan e Macarena Sánchez.

A americana, rentável e popular, é a reconhecida cara vanguardista da seleção dos EUA, país profissional por completo e o mais ganhador (1991, 1999 e 2015) da prova. A 8 de março, Dia Internacional da Mulher, deu entrada no Tribunal Federal uma queixa que a tinha como primeira signatária, apresentada pelas jogadoras americanas contra a federação do país por discriminação de género. Em parte, foi isso que a levou a ser capa da revista “Time”, a par de ser uma das melhores atacantes do mundo, com 109 golos marcados na seleção.

A argentina, salvas as diferenças de estar numa nação onde o futebol feminino ainda é amador, mal pago e pouco seguido, começou a exigir publicamente algo parecido: Macarena queria o estatuto de profissional para as jogadoras do país. O clube onde estava despediu-a e recebeu ameaças de morte “por reclamar melhores condições de trabalho e direitos”, contou à “Tribuna Expresso” em fevereiro. A luta dar-lhe-ia um contrato profissional no San Lorenzo, o primeiro que uma futebolista conseguiu na Argentina.

Macarena não foi convocada para o Mundial, ao contrário de Morgan, a mais do que esperada presença na seleção americana, a mais velha (29 anos de média de idades) e, por arrasto, a mais experiente (todas as jogadoras têm mais de 30 internacionalizações e várias passam as 100) e a que tem mais qualidade teórica por metro quadrado de relva (além de Morgan, há Megan Rapinoe, Tobin Heath ou Carli Lloyd).

A soma de tudo isto resulta nos EUA serem, outra vez, a equipa a bater e da qual se espera a chegada à final, no que será o fim de ciclo de muitas das suas jogadoras.

É por a Alemanha de Dzsenifer Marozsan, a capitã e motor do Lyon, ter lidado com uma fase dessas e ter “renovado muito a seleção” que Raquel Infante está curiosa por a ver jogar. Se as perguntas chegassem há quatro anos, a internacional portuguesa confessa que cingiria as expectativas de conquista do Mundial às americanas e alemãs. Entretanto, muita coisa mudou.

Agora, ficou “difícil” apontar candidatas, admite a defesa do Benfica, que, a ter de escolher, apostaria na França. “Vai jogar em casa e já no ano passado falavam muito do Mundial, já estavam a preparar mil e uma coisas”, diz, ressalvando ao “Expresso” que, apesar de “não terem uma liga muito competitiva”, as francesas têm a base da seleção vinda do Lyon campeoníssimo europeu, além do “entusiasmo do público” em poderem ter algo inédito: os títulos mundiais de futebol masculino e feminino em simultâneo.

Raquel menciona a Noruega, seleção forte e dona da nórdica proeza de ter conquistado um Mundial em 1995, antes de a força do futebol feminino começar a deslocar-se mais para sul, na Europa. Até, por exemplo, à Holanda, “que ganhou o último Europeu mas passou agora por uma qualificação difícil até aos play-offs”, lembra, ao falar da seleção que tem Lieke Martens, vencedora da Bola de Ouro em 2017.

Muito se pode esperar da Inglaterra, terceira do ranking da FIFA, que não pára de crescer e evoluir com um campeonato interno cada vez mais competitivo (por falar nisso, Matilde Fidalgo transferiu-se na passada semana para o Manchester City). Ou do Brasil, “pela histórias e as jogadoras que têm” a gravitarem em torno de Marta, craque de 33 anos e seis prémios de melhor do mundo, que jogará o provável quinto e último Mundial, como certamente o será para Formiga, de 41 anos, que estará no seu sétimo.

A Austrália tem em Sam Kerr um prodígio de técnica e remate que se estreou na seleção aos 15 anos, só três depois de deixar de jogar ‘Aussie Rules’ (futebol australiano que nada tem que ver com o futebol normal). As ‘Matildas’, assim apelidadas, muito têm falado em chegarem à final, mas Raquel Infante duvida. “Podem ter ambição mas, há dois anos, jogámos contra elas no Algarve Cup e não as colocaria entre as candidatas. Mas depende muito dos jogos. A nível de nomes têm grandes jogadoras”, resume. Está, contudo, curiosa por ver o que valem os 16 anos de Mary Fowler, a mais nova do Mundial - “falam muito dela, dizem que é craque”.

Mais certezas há - fora os já referidos - em nomes como Wendie Renard ou Eugénie Le Sommer, central e médio francesas, Lucy Bronze, lateral direito inglesa que, surpresa, joga no Lyon, ou Saki Kumagai, a capitão do Japão que foi campeão mundial em 2011, chegou à final em 2015, mas “parece não se conseguir afirmar” de vez. “E tenho curiosidade de ver a ‘Bunny’ Shaw”, acrescenta Raquel Infante, sobre a avançado jamaicana que chega à prova com a melhor média de golos (1.45 por jogo) da temporada entre todas as convocadas.

Este Mundial é bem capaz de ser o mais visto, o mais espetacular e com mais público nos estádios, sendo certo que terá o maior prémio de jogo total a ser distribuído pelas 24 seleções: cerca de 26,4 milhões de euros, o dobro da edição anterior. Contextualizado, o número já não parecerá assim tão abonatório, pois é cerca de 13 vezes inferior aos 356 milhões que a FIFA distribuiu na edição masculina no ano passado, na Rússia.

Acabamos não onde começámos, mas por algo em que passámos: na desigualdade que afeta o futebol feminino e “no preconceito que ainda existe”. Sim, porque a grandiosidade do Mundial pode colocar desviar as atenções, mas a competição não terá Ada Hegerberg, a mais recente Bola de Ouro, por se recusar a jogar pela Noruega em protesto contra as diferenças de tratamento de uma federação que até já paga o mesmo a homens e mulheres em prémios de jogo.

É como o "mas" dito, logo ao início da conversa, por Raquel Infante: "O futebol feminino está numa fase de transformação no mundo. O impacto está a crescer e todas as ligas estão cada vez mais fortes. Este ano foram quebradas muitas barreiras, em Espanha houve recordes de assistência e em Itália a Juventus abriu o estádio para as jogadores celebrarem com os adeptos". Tudo verdade, mas "ainda existe preconceito" e, com ele, é difícil toda a gente ser igual perante uma bola de futebol.

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