Há 5 anos, Ada Hegerberg afastou-se da seleção da Noruega em protesto contra um sistema desigual. Agora está de volta para matar saudades
Naomi Baker - UEFA
Uma das melhores futebolistas do mundo está de volta ao palco internacional. Ada Hegerberg tomou a decisão de não jogar pela seleção norueguesa durante os últimos cinco anos como forma de protesto contra a forma desigual como o futebol feminino era tratado pela federação. A jogadora anunciou o seu regresso há meses com um objetivo em mente: o Euro 2022, onde entra esta quinta-feira, frente à Irlanda do Norte
“Na maioria dos dias estou otimista. Prometo. E depois tenho dias em que me sinto sem esperança. Chega a um ponto em que ficas tão furiosa que só queres gritar lá fora, sabes? E compreendo as mulheres que hoje estão furiosas porque temos tantos motivos para estarmos furiosas”.
Foi assim que Ada Hegerberg descreveu o que estava a sentir logo no início do documentário em nome próprio. Considerada a melhor jogadora do mundo em 2018, vencedora de diversos títulos coletivos e numa altura em que o seu mediatismo só ia em sentido crescente, a norueguesa recusou o estrelato. Tinha 22 anos e optou por lutar por aquilo que realmente importa.
Em 2017, Hegerberg decidiu deixar de jogar pela seleção da Noruega em protesto contra a desigualdade no tratamento entre as equipas feminina e masculina por parte da federação. Manteve a ausência durante o Mundial de 2019, decisão especialmente notada por se tratar da então detentora da Bola de Ouro. Por escolha própria, ficava fora do maior palco do futebol do mundo.
"Tentei causar impacto [na Noruega] durante muitos anos, e pude ver que este sistema, na federação, não me servia em nada. Sinto que fui colocada num sistema onde não tinha voz", disse Hegerberg à "ESPN" pouco tempo depois de tomar a decisão. "Sentia cada vez mais este peso nos meus ombros: Isto não está a funcionar. Quando se está bastante seguro de si próprio, dos valores e para onde se quer ir, é fácil fazer escolhas difíceis. Para mim, nessa altura, sendo capaz de não me perder e de não perder aquilo em que acredito, tive de fazer essa escolha. Não podia ir por outro caminho".
Aurelien Meunier
Foi quando se juntou ao Lyon, em 2014, que começou a perceber que algo não estava certo. Hegerberg notou grandes diferenças entre as condições a que tinha acesso no clube e as que a federação norueguesa disponibilizava. Na seleção, a regra passava pela falta de investimento, menos equipamentos, menos treinadores competentes e acesso limitado a campos de relva natural.
Ao longo do documentário, a jogadora recorda o momento em que tentou questionar a federação sobre a falta de acesso da sua equipa a um campo enquanto se preparavam para um grande torneio. Mesmo não chegando às competições internacionais, a seleção masculina continuava a ter prioridade. Antes mesmo de o diretor conseguir responder, já o seu treinador a estava a criticar por ter sequer perguntado.
"Não achei que a fasquia tivesse sido colocada suficientemente alta. Tentei falar sobre esses assuntos, mas quando isso não correu bem, tentei baixar a minha voz e encaixar-me no sistema. Isso também não funcionou. Então resta-te uma escolha. Ficas no sistema e não és tu ou fazes uma escolha e segues em frente. É tão fácil quanto isso, mas também tão difícil quanto isso", disse à “ESPN”.
Quando decidiu afastar-se da equipa, deu à federação norueguesa uma lista detalhada de sugestões com a esperança de que as condições mudassem para as suas companheiras de seleção e para a próxima geração de jogadoras. Se todas essas sugestões foram ouvidas cinco anos depois, não se sabe, mas algo terá mudado.
Em 2022, decidiu regressar.
A bandeira como plano de fundo, sorriso rasgado, a trança do costume que segue pelo lado esquerdo até ao rabo de cavalo. Assim surgiu Hegerberg na fotografia publicada em março, com a descrição. “Há muito tempo que não vos via”, escreveu na mensagem dirigida aos seus compatriotas.
"Senti que agora era o momento certo. Tive saudades, tive muitas saudades. Jogar pelo país, representá-lo, é fantástico. Algo que marca profundamente é a ligação com a nova geração. Lembro-me da ligação com todas estas jovens raparigas e rapazes quando estava com a equipa nacional, sentir que os estava a inspirar, isso, para mim, foi muito importante", disse ao “The Guardian”.
Lise Klaveness, eleita no mesmo mês como nova presidente da federação, teve um papel muito importante nesta decisão. As duas conhecem-se desde a altura em que jogaram juntas. O contacto que Hegerberg teve com a federação depois de se afastar foi muito limitado, mas, quando a ex-jogadora e agora presidente a abordou, as coisas mudaram.
“Lise é alguém que esteve no sistema durante esse período. Tivemos longas conversas, discussões, e temos alguma visão sobre o jogo em comum. Ela está muito consciente dos desafios que enfrentámos na altura, aqueles para os quais apontei o dedo em 2017, e sobre a situação do futebol feminino em geral. Foi um grande alívio ter essas conversas com ela. Ela tem sido muito clara quanto à existência de muitas mudanças no sistema, de novas pessoas que têm ajudado a criar novas dinâmicas. Em última análise, poderíamos ter falado sobre a situação para sempre, mas agora tudo se resume a estarmos juntas nisto”, continuou a jogadora.
No fundo, para Hengerberg não se tratou de apresentar uma lista de exigências para o seu regresso e receber a aprovação ou não da federação. A prioridade era juntar forças com a federação em prol da evolução do futebol feminino na Noruega.
Ciancaphoto Studio
Outro momento chave que levou a esta decisão foi a lesão do ligamento cruzado anterior no joelho direito, seguida de uma fratura na tíbia esquerda. A sucessão de maleitas obrigou a avançado a estar 20 meses em recuperação. Regressou aos relvados em outubro do ano passado, pronta para jogar e com uma nova visão. “As lesões deram-me, eu não diria uma mentalidade diferente sobre a situação, porque eu não teria mudado o que aconteceu, mas senti que cresci um pouco. Dá para imaginar como a separação do futebol te faz sentir. Só queria voltar e voltar a jogar”, disse ao mesmo jornal inglês.
E voltou com tudo.
O Lyon terminou a época como vencedor do campeonato francês, depois de, em 2021, ter visto o Paris Saint-Germain interromper uma série de 14 anos de conquistas. Além-portas, a equipa venceu a Liga dos Campeões contra a equipa que esta época parecia imbatível, o Barcelona. Foi a oitava da história do clube e a sexta para Hegerberg, que se tornou uma de apenas duas pessoas a marcar em quatro finais da Champions - a outra foi Alfredo Di Stéfano.
Depois de três anos a nível profissional na Noruega, uma passagem de duas épocas pela Alemanha e oito temporadas de dedicação ao Lyon, em França, o objetivo passa agora por conquistar toda a Europa, em Inglaterra. Se vence ou não o Euro 2022 ainda é uma incógnita, mas quem já ganhou foi a própria modalidade. Regressou o principal rosto da luta pela igualdade no futebol europeu.