O vulcão do futebol feminino espanhol não acalmou. Está sim, de novo, a entrar em erupção na seleção
DeFodi Images
A primeira convocatória sem Luis Rubiales e Jorge Vilda, os já demitidos antigos presidente e selecionador, foi adiada de sexta-feira para esta segunda e chamou 15 das 23 campeãs do mundo, apesar de as jogadoras se terem recusado a ser convocadas. A estreia da Espanha na Liga das Nações feminina é já a 22 de setembro, mas as futebolistas defendem que a federação “não está em condições de exigir que se apresentem”. O governo do país vai pedir à nova treinadora que desconvoque quem não quer estar na seleção. E agora, irão as atletas a jogo? Haverá sequer jogo? Um mês depois do beijo não consentido a Jenni Hermoso, o turbilhão ainda ferve
Não falou na sua língua, esperou até estar sentado diante de um jornalista estrangeiro, a ter de se expressar em inglês, mas a decisão de Luis Rubiales anunciar a sua demissão da presidência da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) durante uma entrevista ao perguntador-opinador Pier Morgan, poderia sugerir, a 10 de setembro, o raiar da resolução de uma batalha de 39 jogadoras internacionais pela seleção espanhola, em particular das 23 recém-sagradas campeãs do mundo. Antes e depois da saída do então já suspenso dirigente que beijou os lábios de Jenni Hermoso sem consentimento, essas futebolistas já tinham deixado um aviso insistente.
Luis Rubiales não era, não é, nem seria a soma de todos os problemas contra os quais carregavam.
Era, sim, a cara mais visível desde que agarrou na cara de Hermoso para a beijar em plena cerimónia de entrega de medalhas na final do Mundial. O gesto soltou a amarra da catapulta que mantém o futebol espanhol em erupção há um mês. Era suposto, na última sexta-feira, Montse Tomé, a nova selecionadora ‘promovida’ do seu cargo de adjunta do demitido Jorge Vilda, revelar a primeira fornada de convocada pós-conquista do Mundial, mas as 39 futebolistas anteciparam-se, apelidando as mudanças (saídas de Rubiales, Vilda e Rafa del Amo, o diretor do futebol feminino na federação espanhola) como “insuficientes para que se sintam num lugar seguro, onde se respeitem as mulheres”. Não o escrevendo no comunicado, mas deixando-o subliminarmente legível, as jogadoras mantinham a recusa em serem convocadas.
Quando, esta segunda-feira, a RFEF jurou um “compromisso” a fazer as “mudanças estruturais” para satisfazer as alterações pedidas pelas futebolistas, parecia um visível fumo branco apesar de figurado, porque nem uma hora depois a treinadora da seleção disse o nome de 15 das 23 campeãs do mundo. Montse Tomé disse que falou com as jogadoras, incluindo Jenni Hermoso, garantiu que nenhuma lhe pediu para não ser convocada e justificou os porquês de ter aplaudido Luis Rubiales “duas vezes” durante o seu caótico discurso no qual se vitimizou contra “o falso feminismo” e recusou, em agosto, a abandonar o cargo. Pazes feitas? Nem por isso.
Pela noite, as futebolistas ripostaram com novo comunicado, aludindo que o anterior tinha “deixado claro e sem nenhuma outra interpretação” a sua “firme vontade” em não serem convocados “por motivos justificados”, assegurando que “não transmitiram nada de diferente a nenhum dirigente” da federação. Mais tarde, o site “Relevo” noticiou que as futebolistas souberam da convocatória pelas redes sociais, várias expressaram diretamente à selecionadora não quererem ser chamadas e que Montse Tomé aplaudiu não duas, mas sete vezes o antigo patrão.
Montse Tomé, a nova selecionadora espanhola.
AFP7
Durante a tarde desta terça-feira, às pingas de vídeos colocados nas redes sociais, várias das futebolistas foram sendo filmadas a encaminharem-se para Oliva, a quase 80 quilómetros de Valência, junto ao mar, solarengo lugar que igualmente espelha o caos devido a outra baldroca: à última, em vez de a seleção se concentrar na sede da federação, em Las Rozas, a entidade trocou o local para supostamente providenciar um sítio seguro para as jogadoras, longe dos dirigentes ainda trajados à Rubialismo. Traduzindo, a ‘casa’ do futebol espanhol não é tida como hospitaleira para as internacionais espanholas. Cozinhando os relatos da imprensa espanhola, a miscelânea indicia o corpo de uma serpente que ainda se mexe após a cabeça ter sido cortada.
Luis Rubiales caiu, Jorge Vilda demitiu-se, o diretor técnico para o futebol feminino seguiu-os, mas, durante a tarde desta terça-feira, viram-se jogadoras carrancudas e de cabeça em baixo a encaminharem-se para vários aeroportos. De Misa Rodríguez, guarda-redes do Real Madrid, ouviu-se um rotundo “não” quando uma jornalista perguntou se estava contente por ir à seleção. “Pois, mal”, respondeu Alexia Putellas quando a inquiriram sobre como se sentia. Aos poucos, as convocadas migraram até aos arredores de Valência onde o respaldo do governo espanhol, pela primeira vez, será concretizado em troca de palavras concretas.
Reunidas no hotel - não sem antes a pintura virar mais rocambolesca com um avaria no avião onde seguiam as jogadoras do Barcelona, que atrasou o voo -, irão conversar diretamente com Víctor Francos, presidente do Conselho Superior do Desporto que o “El País” escreve que será o mediador das negociações entre futebolistas e federação, pedindo que a seleção desconvoque quem não pretende estar lá. A urgência tem envergadura: na sexta-feira há jogo contra a Suécia, em Estocolmo, na jornada inaugural da Liga das Nações, estreia da prova no feminino que conta para a qualificação rumo ao torneio olímpico de futebol dos Jogos de Paris, em 2024. “Passei-lhes a indignação do governo, as jogadoras estavam muito mal, vou tentar ajudá-las. Têm medo de dizer tudo o que pensam”, lamentou o dirigente ao “La Sexta”, canal de televisão espanhol.
Embora se tenham recusado, uma vez e outra, serem chamadas à seleção, as futebolistas viajaram contrariadas para a concentração, elas um aglomerado de feições fechadas, porque a Lei do Desporto espanhola prevê multas até 30 mil euros caso qualquer atleta federado rejeite representar o país quando chamado - ficando, depois, a pessoa impedida de ser chamada por um período entre dois e cinco anos. Entre insatisfações, exigência de mudanças e contestações, a FIFA dita que uma futebolista deve ser informada de uma convocatória 15 dias antes do jogo e como as jogadoras lembraram, por certo legalmente aconselhadas, tal não foi cumprido.
Agora poderão ser elas a incumprir o pedido de representarem a Espanha campeã do mundo, na sexta-feira, na capital sueca, onde têm a seleção local do seu lado. “Têm o nosso apoio total em relação a qualquer decisão que tomem. Se sentem que têm de boicotar o jogo para que algo aconteça, obviamente que vamos apoiá-las”, garantiu Filippa Angeldahl, médio da Suécia. Um mês contado desde a conquista do Mundial, as espanholas parece que estão no mesmo sítio, no seu estado peculiar de sítio.