Nas olheiras de Irene Paredes e Alexia Putellas estão semanas de noites mal dormidas, mas se servir para o futuro terá “valido a pena”
Bjorn Larsson Rosvall
Em conferência de imprensa, as duas líderes da seleção espanhola explicaram o porquê de terem continuado na concentração e os avanços conseguidos na reunião de terça-feira com a RFEF e o Conselho Superior de Desporto, reunião essa que se estendeu até altas horas da madrugada. Antes do jogo com a Suécia para a Liga das Nações (esta sexta-feira, às 17h30), as rivais nórdicas pretendem homenagear estas bravas mulheres, que estão em luta por mudanças não só no desporto mas também na sociedade
Os olhos pesados e algo sombrios não enganam. As últimas semanas, particularmente os últimos dias, não deram a Irene Paredes e a Alexia Putellas grande espaço para noites descansadas. Um risco para quem ganha a vida a correr atrás de uma bola, mas um mal absolutamente necessário quando o que está em causa é o futuro, e que outras futebolistas, outras mulheres, não tenham de ficar caladas.
Sobre o último mês já quase tudo foi contado, desde aquela entrega de prémios em Sydney passando pela infame assembleia-geral em que Luis Rubiales toureou a decência e ainda recebeu aplausos por isso. Rubiales já não está cá, Jorge Vilda, o selecionador a quem as jogadoras não reconheciam qualidade ou conhecimentos, também não. Mas isto não acaba até acabar.
Boa parte das jogadoras campeãs mundiais em agosto foram chamadas à convocatória para os jogos da Liga das Nações com a Suécia e a Suíça depois de terem convictamente anunciado que não estariam disponíveis para tal, até que mais mudanças na Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) fossem reais. Montse Tomé, a nova selecionadora, ignorou tal pedido. Com a espada de uma possível sanção desportiva e financeira a afagar-lhes o pescoço, elas surgiram na concentração, mas sem vontade de ficarem caladas.
Jogadoras espanholas em treino já em solo sueco
Bjorn Larsson Rosvall
Ali estão elas sentadas numa conferência de imprensa em que se vai falar de tudo menos do jogo com a Suécia, esta tarde em Gotemburgo, às 17h30 de Lisboa. Faz agora um ano que 15 jogadoras espanholas assinaram um comunicado conjunto em que pediam, precisamente, mudanças, reconhecimento, que o futebol feminino não fosse o refugo, a última preocupação da cadeia alimentar da RFEF. A mensagem, por mais forte que fosse, não foi clara e perdeu força pelo caminho por isso mesmo. Hoje as jogadoras sabem-no.
E por isso acabaram-se os paninhos quentes, as meias palavras. Houve um comunicado em que as exigências das jogadoras para voltarem à seleção não podiam estar mais límpidas, por pontos, para que nada escapasse. Nos últimos dias, Mapi León e Patri Guijarro, ambas do Barcelona, fizeram questão de explicar à imprensa o porquê de abandonarem uma concentração onde nunca quiseram estar. As que ficaram, depois de uma reunião que juntou jogadoras, RFEF e o Conselho Superior do Desporto (CSD) e que se estendeu até altas horas da madrugada, não ficarão mudas e de cabeça no chão.
E é assim que voltamos às olheiras de Irene Paredes e Alexia Putellas, duas das líderes espirituais e em campo deste grupo de bravas mulheres. “Estamos cansadas, nota-se nas nossas caras. São semanas em que estamos a dormir muito pouco. O único que queremos é jogar futebol em condições dignas e que nos respeitem. Isso até agora tem sido impossível”, sublinhou a defesa, de cara solene, que agradeceu o envolvimento “contundente” do CSD, embora este apoio tenha chegado tarde. “Até agora tínhamos-nos sentido sozinhas”, continuou a madrilena de 32 anos.
A luta destas jogadoras parece aparentemente simples, embora tão complicada para algumas cabeças onde abundam as teias de aranha. “Queremos mudar as coisas para que em algum momento chegue o ponto em que as jogadoras só tenham de se dedicar a jogar e que não tenham de estar dependentes se o sistema funciona ou não”, explicou Paredes, avisando que “a luz ao fundo do túnel ainda não se vê”. Às vezes, são precisas posições de força, que sejam “um ponto de inflexão”, um exemplo para o qual outras mulheres possam “olhar, levantar a voz e dizer: ‘a mim também me aconteceu isto’”.
Mais que futebolistas
Não havendo ainda a tal luz ao fundo do túnel, porque decidiram então as jogadoras permanecerem numa concentração para a qual foram levadas à força das leis, que podem esmagar quem não é suficientemente apoiado, como não o são todas as mulheres futebolistas?
Da reunião que comeu boa parte da madrugada entre terça e quarta-feira saíram alguns começos. Para já, as jogadoras saíram dali com a certeza que, fosse qual fosse a sua decisão, não seriam sancionadas. Ficar foi uma forma de garantir “que as coisas vão avançar”. A saída de Andreu Camps, secretário-geral da RFEF e um dos pilares do Rubialismo, era uma das exigências das futebolistas, que foi aceite. As jogadoras também não queriam deixar “uma bomba nas mãos” das futebolistas das seleções jovens, que provavelmente seriam chamadas à seleção principal caso acontecesse uma debandada. “Temos uma responsabilidade com as jogadoras das sub-23”, explicou Irene Paredes.
Putellas e Paredes ladeando Jenni Hermoso na final do Mundial
Daniela Porcelli/ISI Photos
Ao seu lado, Alexia Putellas dizia a frase que por vezes custa tanto a tragar aos que acham que os futebolistas servem apenas para dar pontapés numa bola. “Somos futebolistas mas tivemos de meter na cabeça que não podemos ser só futebolistas”, atirou a duas vezes melhor jogadora do mundo, toda ela força dentro e fora do campo.
Nos últimos anos, este grupo de guerreiras tem vindo a reclamar que as ouvissem. “Sabíamos que durante décadas - demasiadas - estava a acontecer uma discriminação sistemática com o feminino. Tivemos de lutar muito para sermos ouvidas e isto leva a um desgaste que não queremos ter”, continuou, sublinhando que se tal cansaço servir “como guia para as jovens, terá valido a pena”.
O futebol, continuou Putellas, também é “um reflexo da sociedade” e as jogadoras não queriam ser responsáveis por deixar passar ao lado esta oportunidade de exigir uma mudança de mentalidade. Como disse há dias Xabi Alonso, ex-jogador e agora treinador, por vezes do mau pode vir algo bom. “As minhas filhas vão lembrar-se no futuro daquilo por que estas mulheres lutaram. Elas estão a lutar por algo que é bom para o futebol, mas também para a sociedade”, refletiu o antigo médio, tão claro e justo com as palavras como era com a bola no pé.
Aparentemente mais positiva que Paredes, Putellas acredita que a reunião da madrugada de quarta-feira pode ser “um antes e um depois” nesta luta. A média atacante de 29 anos diz confiar que os compromissos alcançados ao longo de todas aquelas horas extraordinárias farão com que o desporto espanhol, “e em consequência a sociedade, seja um lugar muito melhor”, negando de seguida que as jogadoras tenham pedido a saída de Montse Tomé, antiga adjunta de Vilda que agora assumiu as rédeas da seleção e que a imprensa espanhola diz estar a prazo no cargo, depois da quebra de confiança que terá sido a chamada das jogadoras contra a vontade destas.
Suécia quer mostrar apoio às rivais
Quando, esta sexta-feira, Suécia e Espanha entrarem em campo no Gamla Ullevi por momentos serão apenas uma equipa. Aos jornalistas, Kosovare Asllani, capitã das suecas, assumiu que algo está a ser preparado para que a sua equipa mostre apoio às rivais: “Vamos apoiar as jogadoras espanholas e temos um plano para o fazer, fazendo-o todas juntas”.
A jogadora do AC Milan sublinhou que esta é uma luta “não só para elas, mas para a próxima geração”, lembrando que esta questão ultrapassa o desporto. “Estamos em 2023 e não queremos ver estas coisas. Já é mais que tempo que as federações adotem estas mudanças”, continuou, deixando o desejo que a luta das jogadoras espanholas possa vir a ser “uma inspiração para outros países onde acontece o mesmo mas onde talvez não haja coragem de partir para o conflito” e que no futuro possamos ver “mais mulheres em posições de poder”.