Quantas meninas e meninos terão sonhado ao longo do dia, ao longo da semana, ao longo das semanas, com aquele momento? Quantas e quantos ter-se-ão imaginado com o 14 nas costas e aquele talento abençoado nos pés, recebendo a bola à entrada da área e tendo um instante, uma ocasião, uns segundos para ficar para a história?
Da invasão de adeptos do Barcelona que tomou Bilbau, transformando a cidade basca numa espécie de província remota da Catalunha e San Mamés num pequeno grande Camp Nou, boa parte deles tinha camisolas de Aitana Bonmatí. A proporção aumentava quando se tratavam de crianças, raparigas e rapazes que lhe reconhecem a arte e o génio, a criatividade e a magia.
E todas essas crianças e adolescentes terão sonhado ser, ao minuto 63 da final da Liga dos Campeões feminina, Aitana Bonmatí. Quiçá fantasiem com ver os poderes artísticos da dona da bola passarem para os seus corpos quando vestem uma camisola com o 14 nas costas. Mas de certeza que só ela, no futebol atual, faz o que Aitana faz.
A Bola de Ouro recebeu o passe de Mariona Caldentey, a subvalorizada campeã do mundo. Conduziu, criou dúvida na adversária, rematou. O disparo foi bafejado pela sorte em forma de desvio em Vanessa Gilles. Talvez tenha sido fortuna, ou então é só a bola habituada a obedecer a Aitana.
A melhor amiga de Bonmatí voou em direção ao fundo das redes, terminando com a resistência do Lyon e cumprindo os sonhos da multidão de meninas e meninos que vieram a Bilbau com aquela camisola vestida. Como na catedral se respeitam rituais, a festa não estava completa sem a bênção da rainha. Aos 95', Alexia Putellas, la reina, fez o 2-0 definitivo. A Liga dos Campeões mantém-se em Barcelona.
Bilbau amanheceu vestida de Barça, uma exceção numa cidade onde há vestígios do amor pelo Athletic em cada varanda, janela ou parede. Desde o começo da manhã, uma maré vinda da Catalunha — e não só — evidenciou que, em termos de apoio, a final era desigual.
Ainda não eram 11h e um grupo de quatro homens, nos seus quarentas, já cantava e bebia cervejas perto do estádio. Não tinham pinta de espanhóis e, de, facto, não eram. São quatro irlandeses que se apaixonaram pelo Barcelona nos tempos de Ronaldinho, primeiro, e de Messi, depois. Acompanharam a equipa masculina em finais de Liga dos Campeões, mas, nos últimos anos, “tiveram de mudar o foco”, dizem. “O ADN Barça está, agora, nelas, portanto passámos a viajar com elas”, explica o quarteto irish, que vira cervejas enquanto outros ainda vão no desayuno.
O oceano culé transportou-se das ruas de Bilbau para San Mamés. O aquecimento mostrou-nos logo qual seria a banda sonora da tarde: assobios para o Lyon, ovações para o Barça. O branco ocupava uma ínfima parte da catedral, mas não indiferente para Michele Kang, a mulher dona do OL feminino que perdeu largos minutos, uma hora antes do apito inicial, a ir agradecer o apoio às francesas. A empreendedora norte-americana, nascida na Coreia do Sul, detém também os Washington Spirits, para onde irá Jonathan Giráldez, o técnico do Barça. A emoção do treinador a festejar o 2-0, correndo Mourinhescamente campo adentro, soou a despedida em beleza.
Depois de uma tarja com “Stop Genocídio”, escrito em cima de uma bandeira da Palestina, ter subido ao relvado juntamente com as futebolistas, os minutos iniciais foram de continuidade sonora, com cada ação das espanholas vitoriada e cada lance das francesas apupado. Mas o ruído da bancada parece ter levado à precipitação do Barça, cujas jogadoras entraram em campo querendo fazer tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo.
A primeira grande oportunidade foi para o Lyon. Na sequência de um canto da direita, houve um desvio no cacho de jogadoras ao primeiro poste e a bola foi à barra. Na resposta, a capitã Patri Guijarro viu o golo ser-lhe tirado por Endler. Foi Caroline Graham Hansen, no seu jogo sob patins em linha, vertical e elegante a conduzir a bola, a culé mais perigosa do primeiro tempo, roçando o 1-0 antes do intervalo.
Os traumas das finais anteriores contra o OL eram, para o Barça, de capitulação madrugadora, de ter visto as partidas de Budapeste (2019) e Turim (2022) fugir antes dos 40 minutos. Não obstante, aqui o cenário foi diferente: o Lyon tratou de baixar o ritmo do jogo, tirar ímpeto ao Barça, brincar com os nervos das bancadas, transformar o apoio em ansiedade e a enchente blaugrana em medo cénico. Tudo comandado por Renard, a capitã que parece ter 10 metros quando aborda um duelo.
As campeãs em título entraram na segunda parte virando os nervos para a árbitra, protestando exageradamente cada decisão. Mas os nervos, os traumas, o que for, nada detém, por estes dias, o mover do maravilhoso mundo de Aitana Bonmatí, a campeã do mundo, campeã da La Liga, campeã da Taça da Rainha, tricampeã da Liga dos Campeões. Foi a melhor em campo contra o Chelsea quando, na segunda mão das meias-finais, era preciso dar a volta em Londres à derrota em Barcelona, foi a melhor em campo em San Mamés, perante 50.827 espetadores, novo recorde de numa final da Champions feminina.
Desde 2015, só estas duas equipas sabem o que é vencer este troféu e essa tensão, esse clima de batalha disputada no máximo, notou-se até ao fim. O Lyon, sem o talento do Barça, caiu de pé. Diani roçou o empate num coletivo que se manteve com opções de voltar a ser o pesadelo catalão até aos 95'.
O Barça passou boa parte dos últimos minutos em sofrimento, aliviando bolas, tirando cruzamentos da zona perigosa. Salma e Hansen tentaram desenhar contra-ataques, mas haveria algo de poético na conclusão da tarde.
Alexia Putellas é, hoje, uma reina como as rainhas do século XXI são, uma monarca mais simbólica que com verdadeiro poder executivo. Quem manda agora é Aitana, mas ninguém nega o peso, o carisma, até o poder comercial da canhota.
Uma lesão muito grave pode ter tirado protagonismo futebolístico a Alexia, o arrastar da novela sobre a sua renovação — resolvida dias antes da final — pode ter valido muitas horas de debate nos muitíssimos órgãos de comunicação que passam o dia (literalmente) a falar do Barcelona, mas uma rainha é uma rainha. E a segunda conquista consecutiva, a terceira dos últimos quatro anos, a consolidação da hegemonia, não ficaria completa sem a bênção da rainha na catedral. Aos 95', Alexia fez o 2-0 e deu início à festa.
Um gigante cartaz foi mostrado pela afición do Barça. Dizia “movem o mundo”, retratando diversas futebolistas a segurarem no globo terrestre. Esta equipa que domina o planeta é a casa de Aitana, a feiticeira que de tanto ganhar e ajudar a ganhar, já deve ter a glória dourada inscrita naquele corpo a transbordar de talento.
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