Futebol feminino

Depois de Marta houve mais estrelas, uma delas foi Alex Morgan, a voz do futebol feminino que agora vai deixar de jogar

Depois de Marta houve mais estrelas, uma delas foi Alex Morgan, a voz do futebol feminino que agora vai deixar de jogar
Naomi Baker - FIFA

Em conjunto com Megan Rapinoe, foi outra das capitãs dos EUA que deu a cara, uma e outra vez, pela luta de igualdade salarial e de prémios de jogo para as mulheres. Aos 35 anos e prestes a ser mãe pela segunda vez, Alex Morgan anunciou a sua retirada. Mais do que os 123 golos marcados pela sua seleção, os dois Mundiais conquistados de seguida e as medalhas de ouro olímpicas, deixa um rasto de defesa pública da melhoria das condições das mulheres que jogam futebol

Não há muito tempo, os recordes eram estanques na sua génese, no sentido de não haver assim tantos nos quais se podiam engavetar as jogadoras. Podia ser a com mais jogos pela seleção, a que marcava mais golos, quem lograva fazê-los na maior sequência de partidas seguidas ou a que mais Bolas de Ouro coleciona, tudo distinções individuais no futebol em que vivalma ganha sozinha. Com o seu iminente descalçar de chuteiras, entre os vários recordes que juntou na carreira, Alex Morgan tem um em particular que longe está de ser o mais espampanante ou reluzente na estima convencional, mas lhe assenta à medida para ilustrar o que representa para o futebol.

É a mãe que mais golos (16) marcou pelos EUA.

O recorde é de Alex Morgan, todas as bolas foram rematadas pelos seus pés ou pela sua cabeça, a goleadora é ela, porém a estatística tem um cariz coletivo, uma dimensão que a extravasa e de certa forma também a supera, tendo uma natureza condizente ao que a norte-americana se esforçou por representar no futebol feminino ao longo dos anos. Mais do que ser a quinta melhor marcadora (123 golos) da seleção com maior sucesso (quatro Mundiais e cinco medalhas de ouro olímpicas) na história, de a própria ter ganhado dois Campeonatos do Mundo de seguida, a voz nunca lhe tremeu, nem os dedos vacilaram, quando foi preciso falar ou teclar pela luta por melhores condições para as mulheres que jogam futebol.

A norte-americana que se veste há muito de megafone, pronta a magnificar várias reivindicações de uma geração de jogadoras, vai, aos 35 anos, deixar os relvados. Será seguro deduzir que demorará muito mais tempo a abandonar a exigência pública de mais condições para o futebol feminino. A despedida de Alex Morgan acontece já na madrugada de segunda-feira (1h), numa partida entre o San Diego Wave que representa e o North Carolina Courage da liga do seu país. Não será um adeus com a camisola dos EUA, que talvez fosse mais condigno, por dois motivos, um mais condicionante do que o outro.

Face à idade e à forma recente, a avançada vinha a perder protagonismo na seleção, sobretudo desde a chegada de Emma Hayes, inglesa que assumiu o comando da equipa pouco antes dos últimos Jogos Olímpicos. E porque Charlie, a sua filha nascida em 2020, está a caminho de ser a irmã mais velha de alguém e Alex Morgan, além da já algo arredada das preferências da nova selecionadora, preferiu não ter de aguardar mais um mês até a seleção dos EUA lhe conceder honras de ter uma despedida em campo com o seu lucky number 13 de sempre estampado nas costas da camisola (os próximos encontros são apenas em outubro, daqui a mais de um mês).

Foram duas novidades embrulhadas no vídeo que a jogadora publicou, na quinta-feira, a anunciar a sua reforma. Morgan sumarizou os seus feitos, falou nos Mundiais e nas medalhas de ouro, confessou que “sentiu no coração e na alma” desde o início do ano que este seria o seu último, teve obviamente palavras para sua carreira ímpar e realçou como deu “tudo por esta modalidade”, tendo recebido “em troco mais do que alguma vez” imaginou. Também deixou a sua versão do que define o sucesso - “nunca desistir e dar o máximo” - e, dando uma pausa a ela própria, estancando um quê de emoção, frisou como deu “tudo” no “incansável esforço pelo investimento global no desporto feminino”.

O fecho da cortina na vida com chuteiras de Alex Morgan haveria de entroncar, por boa inevitabilidade, na sua empatia por causas maiores do que ela.

A cortejar a ribalta desde 2010, quando foi uma jovem californiana de pele habituada ao sol e calor a ter uma estreia pela seleção empapada em neve, no friorento estado do Utah, abraçou-a, no ano seguinte, ao marcar um dos golos da vitória na final do Mundial, contra o Japão, sendo a mais nova da equipa, Morgan usou e dispôs do alcance que construiu na sua personna pública para bater o pé, uma e outra vez, na exigência por melhores condições para as futebolistas americanas.

Em 2016, foi uma das cinco internacionais que se assinaram um protesto enviado à Equal Employment Opportunity Commission, uma instituição governamental, que serviria de base para a acusação formal que em 2019 teve todas as jogadoras da seleção a acusarem a Federação de Futebol dos EUA de discriminação de género. Ela, com elas, jogou e conquistou um Campeonato do Mundo enquanto tinham uma disputa judicial com quem lhes pagava por esse esforço. A lista de feitos futebolísticos de Morgan é vasta, a dos louvores que se lhe reconhecem fora do campo talvez ainda mais.

Em 2022, enalteceu “o momento de orgulho” que foi a federação concordar igualar os prémios de jogo pagos à seleção feminina com os que praticava na equivalente masculina. “O que esperamos agora é que a FIFA faça o mesmo nos seus torneios. É isso que nos propusemos a fazer. Igualdade em todas as frentes”, disse então Morgan. Antes, em 2020, juntara-se a Megan Rapinoe, ajoelhando-se durante o hino nacional dos EUA em protesto contra a violência racial da polícia do país. A sua atenção nunca se cingiu ao cosmos da realidade norte-americana, a nação-bandeira no futebol feminino.

O ano passado, o Lyon, supostamente vanguardista na estima do futebol feminino, suspendeu o salário de Sara Björk Gunnarsdóttir enquanto a islandesa esteve grávida. A jogadora pôs o clube em tribunal e Alex Morgan, ela própria mãe desde 2020, sentiu-se “compelida” a deixar o seu apoio à jogadora no X, escrevendo na rede social cinco coisas em que “no mínimo” o clube deveria apoiar uma futebolista com um filho. A própria americana, em 2016/17, representara a equipa francesa, com a qual ganhou a Liga dos Campeões. Na segunda aventura europeia, seria Morgan quem bateria à porta dos dirigentes do Tottenham pedindo-lhes para deixarem a equipa feminina usufruir exatamente dos mesmos campos de treino indoor que os homólogos masculinos usavam.

A atenta preocupação da ‘Baby Horse’, assim alcunhada nos primeiros tempos na seleção pelo estilo galopante de avançada que sempre foi, cheia de desmarcações e remates na passada, não desvaneceria com a idade. Em 2023, antes do Mundial da Nova Zelândia, quando já era uma das capitãs dos EUA a meias com Megan Rapinoe, criticou o “bizarro” rumor de que a FIFA estaria a negociar um contrato de patrocínio para o torneio com a Arábia Saudita, país onde a homossexualidade é ilegal e os direitos das mulheres estão sujeitos à aprovação dos maridos. “Nem eu seria apoiada e aceite se fosse lá, por isso não entendo e daí que toda a gente tenha criticado porque, moralmente, não faz sentido”, argumentou, sem papas a estorvarem-lhe a língua.

Dona de cara que as câmaras apreciam e heterossexual num mundo onde, ao contrário do dogmático equivalente masculino, é mais aberto a assunções públicas de relações homossexuais, Alex Morgan cedo defendeu os direitos LGBTQI+, criticando publicamente, já este ano e ainda enquanto capitã da seleção, Korbin Albert, jogadora convocada para os Jogos Olímpicos e autora de partilhas nas redes sociais a defenderem que ser gay “é errado”. Sem nevoeiro na cabeça a afetar a distinção entre o certo do errado, Morgan fez a carreira com pouco, se é que algum receio, em assumir posições públicas sobre assuntos sensíveis, coisa que a maioria dos futebolistas, no masculino, fogem a sete pés de fazer até em temas superficiais.

Navegando com mestria nessa exposição, amealhando títulos e marcos no campo, a Alex Morgan jogadora foi crescendo à medida que a sua influência enquanto voz sábia se expandiu no futebol feminino que a acolheu como figura planetária após muito caminho ser desbravado por Marta, ícone mais pela absurdidade de talento, pelos dribles mágicos e pela aptidão extraterrestre em ser superior a todas as adversárias no seu auge. Na primeira década deste século, a brasileira engrandeceu-se ao ponto de ser o maior íman sedutor de atenções que a bola chutada por mulheres já teve. Quando essa base se criou, apareceram Megan Rapinoe ou Alex Morgan, e Alexia Putellas e Aitana Bonmatí depois delas.

Reformada que está Rapinoe, prestes a retirar-se agora Morgan, o futebol jogado por mulheres perde duas vozes que sempre apareciam a estimá-lo, a gritá-lo, nos momentos em que a bola pontapeada por elas mais precisou.

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