De paredes apertas e encafuada de gente, a sala que a Thinking Football Summit, cimeira organizada pela Liga, no Porto, dedica a entrevistas não permite muitos recantos sossegados. Às tantas, um ‘xiu’ chega do outro lado do espaço onde câmaras gravam uma entrevista, clamam para que a nossa conversa se contenha nos decibéis. “Eu sou português, falo alto”, justifica Francisco de Sá Fardilha a meio de um encolher de ombros, tão compreensivo quanto despreocupado com o queixume alheio. Ele explica, entusiasta, a forma de fazer as coisas no futebol feminino do Bayern de Munique que teve de deixar entrar para debaixo da pele há ano e meio, quando chegou para ser diretor técnico do projeto. A aprendizagem foi rápida.
Antes da conversa, cruza-se com Ariane Hingst, lenda do futebol do país que é uma das fundadoras do Viktoria Berlin, o clube gerido como uma startup onde só mulheres dão pontapés na bola. Fala-lhe num alemão perfeito, ela surpreende-se, ambos riem. Pouco antes, num dos palcos do evento, o português discursou num inglês igualmente limado e quase com sotaque de quem é nativo da língua germânica. Francisco não sabe bem se isto será elogioso. Com experiências anteriores no Bordéus e no Lille, na França onde nasceu, o estudante de jornalismo que depois perseguiu a formação académica em treino na Escócia e até baseou a sua tese de doutoramento em Bernardo Silva, para versar acerca da criatividade no futebol, parece ter a cultura do Bayern já impregnada.
Ele leu tudo o que pôde sobre o gigante clube bávaro antes de lá começar e hoje, sem um soluço, uma hesitação, expõe de que maneira o Bayern que pretende conquistar a Liga dos Campeões se comporta, a cada dia, para ter os seus tijolos bem colados: com equipa feminina há 54 anos, no clube lembram-se bem dos tempos em que a Alemanha proibia as mulheres de jogarem futebol e o contexto teimava em menorizá-las como amadoras. Na instituição que almeja ser enorme na Europa, a memória é o núcleo de tudo. “A nossa secção de futebol feminino passou por todo o amadorismo, sem essa parte não estaríamos onde estamos hoje. Por isso é que é muito importante para nós guardarmos a nossa identidade”, resume Francisco de Sá Fardilha.
Exemplificando, ele diz com naturalidade que as várias estrelas do futebol feminino que constam na equipa, como a dinamarquesa Pernille Harder, a sueca Magdalena Eriksson, a alemã Lena Oberdorf ou a inglesa Georgia Stanway executam tarefas mundanas como levar a própria roupa à lavandaria ou tratar da pressão das bolas que vão chutar nos treinos, coisas que no masculino são impensáveis. “Para nós é muito importante e não é negóciável, seja quem for a jogadora que venha, não é diferente das outras. O que elas percebem assim que chegam é que não é uma questão de capricho, mas de identidade.”
Nessa cultura cabe a estima do clube em não esmifrar as raparigas ou jovens mulheres só com palas direcionadas para o futebol. Francisco explica a paciência que o Bayern estima em não apressar quem ainda divida a bola com os estudos, ou de recrutar jogadoras o mais possível da vizinha de Munique, para lhes atenuar o esforço da separação da família quando for o dia para se mudarem.
Se correr bem, ótimo, se não forem subindo escalões e ficando, tentam que tudo fique bem também - por antes fazerem com que assim seja. “Quando uma empresa vai contratar alguém à universidade de Harvard, Stanford, Cambridge ou Oxford ninguém pergunta as notas. É um pouco isso, elas terem um carimbo de formação de qualidade que lhes permita depois terem ambições de jogarem noutros clubes de alto nível ou então prosseguirem a educação”, explica o português que entre as suas funções está comunicar aos pais das futebolistas os porquês de elas não permanecem. Francisco vinha habituado “a enfrentar um bocado a cólera e a raiva noutros países”. Hoje em dia, é surpreendido pela quantidade de vezes em que lhe dizem “obrigado por tudo”. É neste caminho que ele acredita, sem se distrair na atenção que presta à evolução do futebol feminino em Portugal.
Disseste há pouco em palco que uma das vossas ambições é que as mulheres que jogam no Bayern sejam encaradas como modelos para miúdos que estão a começar a jogar. Como é que se trabalha isso no dia a dia? É difícil?
Sim e não [ri-se]. Nós não fazemos de propósito para que isso acontece, mas temos visto que hoje o nosso estádio enche muito facilmente e cada vez mais rapazes e homens com camisolas das jogadoras, estamos a acabar um pouco com os estereótipos de que elas não conseguem jogar, que não consegue ser um jogo atrativo. Temos um estilo de jogo esteticamente atrativo e acho que isso também contribui. Às vezes fazemos treinos abertos e vemos cada vez mais rapazes, fala-se muito nas famílias, mas vemos cada vez mais rapazes que têm jogadoras nossas como ídolos, como alguém que os inspira.
Tentam que a equipa jogue muitas vezes na Allianz Arena? Isso ajuda?
Há sempre muitas dificuldades em termos de calendário, as pausas internacionais também são diferentes, mas bato muito nisto, porque falamos muitos nos nossos pilares de estabilidade e sustentabilidade: ainda temos uma certa educação a fazer em termos do público. A Allianz Arena tem 75 mil lugares e nos jogos de cartaz da Champions League, contra Arsenal ou Barcelona, estamos a falar de cerca de 30 mil espetadores. Portanto, para nós o mais importante é crescer de uma forma sustentável. Nós jogamos no campus do Bayern, que é uma estrutura muito moderna com 2.500 lugares, hoje em dia esgota muito rapidamente cada vez que abrimos a bilheteira. Estamos a estudar alternativas intermédias, digamos, porque também é importante desportivamente que as jogadoras sintam...