Futebol internacional

O génio faz 30 anos e ainda não sabemos quem ele é

O génio faz 30 anos e ainda não sabemos quem ele é
Jan Pitman

Nasceu há 30 anos o humano que faz quase todos os outros humanos, que escolhem jogar futebol contra ele, parecerem portadores de problemas de coordenação motora. Hoje é o aniversário de Lionel Messi e nunca houve um jogador tão melhor que os outros de quem soubéssemos tão pouco

A bola não é assim tão boa. Vem pelo ar, com bicho, mais chateada do que mansa, a cair-lhe sobre a cabeça. Ele é pequeno, tem cabelo de adolescente, liso, a tapar-lhe os homens, e na sua pequenez só tem altura para receber o passe com a cabeça, em esforço. A bola foge-lhe, vai para a frente do defesa que está à frente dele. Acelera para retomar a posição que perdeu. O adversário, mais alto, mais pesado e, lei da gravidade e das massas, mais lento a virar-se, é ultrapassado pela velocidade e por um encosto.

O pequenote fica com a bola.

Está de costas para a baliza. O tempo e o espaço conspiram e dão-lhe tempo para se virar, olhar e decidir o que lhe der na gana. Mas não. Ele toca ao de leve na bola, passa-a ao guedelhudo, dentudo e esbugalhado que tem a dois metros. O sorriso permanente que, no seu tempo, foi o primeiro a estar na fila em que os deuses distribuíram a genialidade para jogar à bola. Esse brasileiro recebe e, como uma colher, levanta a bola para ele cair à frente do pequeno.

Ele estica o pé, mas retrai-o à última. Não domina a bola, deixa-a bater na relva e ressaltar. Puxa a perna atrás, parece ir buscar força para ser bruto a rematar. É um engodo para ludibriar o defesa que se atira, a deslizar, para a sua frente, descrente no jeito, na técnica e na calma com que ele inventa um chapéu.

A bola voa por cima do guarda-redes e entra na baliza. Ele arranca a correr, gesticula com os braços, descontrolado, até deixar o êxtase para trás. O primeiro a acudi-lo é a personificação da alegria no futebol.

Ronaldinho coloca-o às cavalitas e, sorridente para sempre, caminha um pouco com ele. Festa.

Um miúdo em cima da boa-disposição, o futuro nas costas do presente. O primeiro da fila de uma geração a suportar o peso de quem teve uma fila só para ele no dia da entrega do talento.

Fazer o raio-x do primeiro dos 507 golos que Lionel Messi marcou é de uma irrelevância quase total. É culpa do quão relevante foram as jogadas, fintas, raides e tarefas sobre-humanas que ele fez nos segundos antes de marcar muitos dos golos que marcaria depois.

Mas foi ali, na calma e frieza de um chapéu feito aos 17 anos que tudo começou.

Antes do golo, já ouvíramos falar deste pequeno argentino. La Masia, escola de formação do Barcelona, não tinha muros altos o suficiente para conter a história dele. Os pais convenceram-no a mudar-se para Espanha, depois de convencidos pelo clube a embalarem o filho, de 13 anos, para o outro lado do oceano.

A genética de Lionel fazia-o crescer mais devagar que os outros, e o ser ágil, técnico, génio, habilidoso, serpenteante e nunca perdedor da bola vinham sempre com um “mas” atrelado - era bom, sim, mas era pequeno demais.

A pequenez não o importunava em Rosario, na Argentina, cidade onde nasceu e brincava com quem jogasse contra ele. É a moral das muitas estórias que se contam, como a das apostas que Messi fazia com treinadores para ter alfajores, uma espécie de bolacha de chocolate, em troca de golos.

Um deles, Carlos Marconi, que o apanhou no Newell’s Old Boys, farto da despesa e das bolachas que tinha de pagar ao pequeno rei do recreio, mudou as regras: por cada golo de cabeça, Messi receberia duas bolachas, conta uma reportagem do New York Times.

No jogo seguinte, ele fintou uma equipa inteira, parou na linha de golo, levantou a bola até à cabeça, marcou e olhou para o treinador. Fez um sorriu maroto e apontou-lhe dois dedos.

Não seriam os dedos indicadores de cada mão que aponta enquanto olha para o céu, após cada golo que hoje marca. Lembra-se de Celia, mãe da sua mãe, a senhora que o pôs a jogar à bola e que era chata e insistente com os treinadores, os cegos que olhavam mais para a falta de tamanho do que para o pé esquerdo do neto.

A avó morreu quando Lionel tinha 10 anos, três antes de ir para Barcelona e deixar de apostar com bolachas e golos.

Ele seria bem mais anafado e a pesar mais do que devia se o tivesse continuado a fazer. Porque não há parte anatómica do golo que Messi não tenha experimentado, ou feito, desde que chegou ao clube que pagou as injeções e tratamentos para o argentino crescer.

O corpo foi até aos 170 centímetros, o resto ninguém sabe onde vai chegar.

Não é por já feito bolas entrar na baliza com o pé esquerdo e direito, com a cabeça e com o peito, com as coxas e até com a mão. Em livres ou em penáltis. É por, no mundo em que estamos e na altura em que o vivemos, não haver pessoa a fazer o que Messi faz.

Mas não são os golos.

É o antes – são os segundos que os precedem. Ele dobra e desdobra o corpo em simulações. Desvia-se em direções opostas, ao sprint.

Parece ter o dom da previsão de um segundo, o suficiente para saber onde e quando os adversários vão esticar o pé. Vai quase sempre para o lado contrário dos outros. E faz os outros humanos parecerem portadores de problemas de coordenação motora, porque tudo o que lhe sai do corpo, sai com a bola a fazer parte dele.

Messi é um felizardo. Dotado. Abençoado.

Tem um jeito que nasceu com ele, que o deixa ser quem mais tempo a sós tem com a bola, sem que alguém o consiga importunar. Já o vimos a ir várias vezes contra o mundo que cabe num campo de futebol e a ultrapassar os oito, nove ou dez tipos que lhe podem aparecer à frente.

Se lhe dessem uma bola no meio do mais lotado festival de música, chegaria até ao palco com ela no pé esquerdo e em condições de a rematar contra o vocalista da banda. O espétaculo de Lionel Messi está aí, mais do que nas cinco Bolas de Ouro, nas quatro Liga dos Campeões, nos oito campeonatos espanhóis ou nas três Super Taças Europeias que já ganhou com o Barcelona.

Há oito anos que é o remetente de mais de 35 golos por época. Ou de 50 se contarmos a partir apenas de 2011. Ele chegou a marcar 73 em 2011/12 e 88 num ano civil. A forma mais fácil de acrescentar parágrafos a um texto seria engordá-lo, naturalmente, com os recordes e números de Messi.

Ou com as comparações e a luta e a rivalidade com o único humano que lhe faz frente na estatística. Mas nem ele, nem Cristiano Ronaldo, o yin e o yang um do outro, jogam para que se tenha de odiar um caso se adore o outro.

Faz tanto sentido como beber uísque ao pequeno-almoço.

Só que os estilos divergem, muito.

Messi tropeçou e caiu dentro do caldeirão da sopa talento quando era bebé, Ronaldo teve de inventar a sua receita de poção mágica. O incrível de Lionel sai-lhe naturalmente, o de Cristiano é aprimorado para o mesmo nível com trabalho e treino. O português dá entrevistas, abre lojas, inaugura um museu, tem marcas de roupa, é convencido, filma um documentário, dá nas vista e fala e opina.

O argentino é recatado, não gosta de ser entrevistado, fala pouco, aparece em mais anúncios para a Ásia do que para o lado de cá do mundo; está no seu canto.

Ele pode ser famoso, mas não se podia conhecer menos dele. É por tanta gente saber tão pouco sobre Lionel Messi que o rumor, o ridículo e o insignificante é tão magnificado quando tem a ver com ele.

O alegado autismo. Os fatos berrantes que veste para as galas. As tatuagens que cobrem o braço. As lágrimas que não escondeu ao perder a segunda final seguida da Copa América, o maior sinal de que, afinal, é humano, e que evidenciou o peso que o esmaga por três motivos – por ser quem é, por nunca ter conquistado um título com a seleção, e por ser argentino.

Ele é o contrário do que foi o pequeno génio que nasceu antes dele. Diego Maradona nasceu pobre e com fome em Buenos Aires, era polémico, crítico, conflituoso e com o coração na ponta da língua, viveu ao máximo o futebol e o dinheiro que ele lhe deu para o álcool, as drogas e a vida fora dele.

Lionel Messi é filho de uma família de classe média de Rosario e fugiu aos impostos em Espanha, onde vive há quase 20 anos. Todos os argentinos sabem como Maradona é, ninguém realmente sabe quem é Messi.

Nunca houve um jogador tão melhor que os outros de quem conhecêssemos tão pouco.

Mas é obrigatório compreender um génio para o admirarmos e percebermos que, depois dele, dificilmente virá alguém igual - disse ninguém, nunca e em parte alguma, sobre Lionel Messi.

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